terça-feira, junho 04, 2013

Teresa Mulata


Pintura de Ningbo

Essa mulata Teresa
Tirada lá do sobrado
Por um preto d'Ambaca
Bem vestido,
Bem falante,
Escrevendo que nem nos livros!

Teresa Mulata
- alumbramento de muito moço -
Pegada por um pobre d'Ambaca
Fez passar muitas conversas
Andou na boca de donos e donas...

Quê da mulata Teresa?

A história da Teresa mulata...
Hum...
Vôvô Bartolomé enlanguescido em carcomida cadeira adormeceu
O sol coando das mulembeiras veio brincar com as moscas nos
[lábios
Ressequidos que sorriem
Chiu! Vôvô tá dormindo!
O moço d'Ambaca sonhando...

Poema de António Jacinto
(Angola)

quinta-feira, maio 30, 2013

Desertos de palavras

Ana Campelos



Entristecem os sorrisos

De coração atado dentro da boca
Não sabem como dizer
Que nas mãos, talvez ainda coubesse o verde das colinas
E nos olhos, a razão de todas as nascentes
Mas a voz exangue é uma escarpa, uma vereda
De saliva quente em poeira azeda
E as sílabas são ruínas dos olhares poentes

Definham no chão, os sorrisos
Na rua só se encontram
Desertos imensos de palavras.  



quarta-feira, maio 15, 2013

A Música das Esperas


Ponho no forno
Um bolo de maçã
Calor e alegria
Nesta tarde.
Calorias, bem vês,
Moldam-me o corpo
São vestes,
São reversos
São afagos.

Acumulo-te em mim
Em quilos de farinha,
De açúcar, de ternura
De opressão

O que sei fica tão longe
Do que sinto
E a noite é tão profunda
Que me minto
A toda a hora
Em cada decisão.

Poema de Isabel Fraga, 
in “A Música das Esperas” pág. 22

Capa da livro



 Na suave ilustração de capa e contra-capa de Inês Ramos o novo livro de poesia de Isabel Fraga transporta-nos ao seu “Eu” interior numa lírica que transcende viagens de saudade, enternecimento, solidão e amor.
A autora de estrofe em estrofe voa pelos caminhos delicados da sua alma ao encontro de outros mundo onde se revela na mais pura das sínteses.

“…
Água de essência
Onde a verdade se reproduz.
Só as longas raízes
A pressentem.”

(in, pág. 23)

quarta-feira, março 27, 2013

Suicídio


O rio entrou pela janela
e transformou em areia
a pedra que eu tinha
debaixo dos pés.

A água subiu por mim
como uma bênção,
as flores abriram
e passei a ouvir pianos.

O mar, veio depois,
meditabundo
nas primeiras vagas,
arrebatado
nas seguintes.

Então, surgiu o sol
e o massacre das sombras
foi total:
suicidaram-se a cada palavra tua..

Poema e imagem de Nilson Barcelli

domingo, março 03, 2013

Poeta atirado aos bichos

Pintura de John Landa

Meu amor:
Nem tu percebes ainda o bater
ansioso dos tendões nos afinados
motores bem mainatos passando a ferro
o capim debaixo das obscenas chapas
na maquilhagem embelezando
a escarlate as picadas.

E
tua ostra de chamas
cerra-me no seu íman de con-chá
palpitando as mornas pétalas do teu gerânio
um belo coiso de gemidos no tálamo
de capim onde alongamos os nossos
pesadelos em fragmentos
dispersos na mata à ferroada
dos insectos de obuses.

Porque
confesso-te, meu amor
não são bem propriamente o que eu desejo
estes pervertidos versos sem rima e sem nada
mas unicamente nacos fixes de um poeta
de carne em sangue no meio deste zôo
atirado aos bichos!

Poema de José Craveirinha (Moçambique)

quinta-feira, fevereiro 14, 2013

Éramos eu e tu

Clicar  para aumentar- imagem Google


Éramos eu e tu
Dentro de mim
Centenas de fantasmas compunham o espectáculo
E o medo
Todo o medo do mundo em câmara lenta nos meus olhos.

Mãos agarradas
Pulsos acariciados
Um afago nas faces.

Éramos tu e eu
Dentro de nós
Suores inundavam os olhos
Alagavam lençóis
Corriam para o mar.
As unhas revoltam-se e ferem a carne que as abriga.

Éramos tu e eu
Dentro de nós.

As contracções cada vez mais rápidas
O descontrolo
A emoção
A ciência atenta
O oxigénio
A mão amiga
De repente a grande urgência
A hora
A violência
Éramos nós libertando-nos de nós.
É nossa a dor.

São nossos o sangue e as águas
O grito é nosso
A vida é tua
O filho é meu.

Os lábios esquecem o riso
Os olhos a luz
O corpo a dor.

A exaustão total
O correr do pano
O fim do parto.

Poema de Dina Salustio (Cabo Verde)



domingo, dezembro 23, 2012

"Natal é quando o homem quiser..."



Estava aqui a pensar no que havia de escrever, para este Natal, mas tanta coisa já foi dita que as palavras acabam por ser uma repetição de todos os anos.
Saúde, paz, amor, alegria, é o que desejamos, afinal, para todo o ano.
É aquilo que eu desejo, no dia a dia, para todos.
E recordo as palavras de um grande poeta no poema que vos dedico...

 
Tu que dormes a noite na calçada de relento
Numa cama de chuva com lençóis feitos de vento
Tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que dormes só no pesadelo do ciúme
Numa cama de raiva com lençóis feitos de lume
E sofres o Natal da solidão sem um queixume
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher

Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
Tu que inventas bonecas e comboios de luar
E mentes ao teu filho por não os poderes comprar
És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
Fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
Pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher.

Poema de Ary dos Santos

sexta-feira, novembro 16, 2012

Navegando na tua memória

Evgeni Gordiets


Deixei as certezas na praia
Quando a última onda te levou
E as gaivotas choraram a perda.

Em cada grão de areia
Uma estrela te acolheu
No sal que deixaste preso a mim.

Foste a maré que me trouxe aqui
A saudade de quem parte para a tempestade.
Foste a minha plenitude, a minha verdade.

As marés não pararam o seu balanço.
As gaivotas continuam à tua procura
Na espuma de cada onda que beija a costa.

E eu fico sentado, ali, chorando cada lágrima
Como se mais uma memória tua me sorrisse
E me banhasse na nossa história.

Por fim viajo em mais uma fase da Lua
Regressando sempre ao mesmo lugar
Esta saudade minha e tua será sempre nossa

Seremos sempre nós a navegar.


sexta-feira, novembro 02, 2012

o profundo azul da noite

(imagem daqui)

 
O azul que me veste as mãos por dentro
é ainda o profundo azul da noite
em que bebi no sal da tua pele
o branco aceso do meu corpo
e o silêncio da aragem miúda
que antes da chegada do vento
te havia de romper os olhos
em lágrimas de espanto e sede
pela sombra dos meus dedos.

Poema de Ana Oliveira


segunda-feira, outubro 29, 2012

Os Poetas não morrem. (Julho 1947-Outubro 2008)

Um amigo, poeta, escritor, historiador, encenador, político, professor, o Homem que incorpora tudo numa só pessoa...
 
     Fernando Peixoto


Tu não sabias...

Tu não sabias que eu sei quanto sabias
Tu exibias o que em ti desconhecias

Porém, tu vias, pressentias
na magia das horas mais amargas
o ponteiro dos segundos com que vias
rodarem no sentido das palavras...


E no silêncio das horas se estendia
um carinho sinuoso, entorpecente,
um meigo sorriso que escorria
num rio de ternura languescente.


Tu não sabias... nem eu... nenhum de nós
que a vida esconde os seus segredos
nos silêncios da nossa própria voz
e no código de amor dos nossos dedos.

Poema de Fernando Peixoto

sábado, outubro 20, 2012

Manuel António Pina (1943-2012)

Escritor e jornalista foi premiado em 2011 com o Prémio Camões, o mais importante das letras em língua portuguesa. Tem publicados trabalhos em Espanha, França, Dinamarca, Alemanha, Holanda, Croácia, Bulgária, Rússia e Estados Unidos.
De 1973 a 2012 publicou mais de 40 obras e recebeu uma dezena de prémios pela sua obra.
Faleceu ontem aos 68 anos de idade.

 
O Pássaro da Cabeça

Sou o pássaro que canta
dentro da tua cabeça
que canta na tua garganta
canta onde lhe apeteça

Sou o pássaro que voa
dentro do teu coração
e do de qualquer pessoa
mesmo as que julgas que não

Sou o pássaro da imaginação
que voa até na prisão
e canta por tudo e por nada
mesmo com a boca fechada

E esta é a canção sem razão
que não serve para mais nada
senão para ser cantada
quando os amigos se vão

E ficas de novo sozinho
na solidão que começa
apenas com o passarinho
dentro da tua cabeça.

(Poema de Manuel António Pina
in "Carta a um jovem antes de ser Poeta")

quarta-feira, setembro 12, 2012

Coletânea de Poesia Portuguesa

Para os aficionados das novas tecnologias está disponível em formato digital o I volume da Coletânea de Poesia Portuguesa.
Este livro só pode ser visualizado com iBooks 2.0, num iPad com a função do iOS 5.0 e é seu autor Luís Gaspar num trabalho conjunto de Deana Barroqueiro e do editor André Gaspar.



E PEDE-ME AGORA O QUE NÃO DEVIA


Reparastes, donas, que no outro dia

O meu namorado comigo falou

Como se queixava? Tanto se queixou

Que lhe dei o cinto, dei-lhe o que podia;

E pede-me agora, o que não devia.


Vistes (antes nunca tal coisa se visse!)

Que à força de muito, muito se queixar,

Fez-me da camisa o cordão tirar;

O cordão lhe dei: no que fiz tolice,

E o que pede agora, antes não pedisse.


Das minhas ofertas, João de Guilhade,

Enquanto as quiser, não o privarei,

Que muitas e boas, já dele alcancei;

Nem lhe negarei, minha lealdade,

Mas…de outras loucuras, tem ele vontade!


Poema de João Garcia de Guilhade, trovador português,

nascido em Milhazes, concelho de Barcelos durante o século XIII.

domingo, setembro 02, 2012

O Instante da Palavra

Imagem Google


No papel vos entrego a palavra
Permito-vos o sentido
E mais
A liberdade do ritmo
da entoação
da voz
do tempo em que a respiras.

A liberdade da invenção para a metáfora.

A partir deste momento desconheço
se a palavra ainda me pertence
Sei que a libertei
para o mar ou para o espaço
Para fora de mim
Para sempre
Para nunca

Talvez que o que é vento
seja agora o meu respirar
O que é mar seja água
Talvez que o que é rio
seja agora vala extensa
onde vos deixo a palavra a correr
Apetecida
Renegada
E de súbito
a palavra foi um instante
Ou talvez não



quarta-feira, julho 11, 2012

Escrevo com as mãos nuas



Escrevo com as mãos nuas
sobre esta folha de papel sem fundo.
Sobre este musgo gélido onde escrevo
nem sequer existe o rumor da folhagem.
As palavras continuam assustadas
como um arbusto que não pára de tremer…

Escrevo com as mãos nuas.
A nudez permite a transparência das sílabas,
o decantar das sombras na escadaria da noite,
a penetração no obscuro, a revelação do invisível.
No olhar encandeado, há candelabros acesos
como um espelho polvilhado de estrelas.
O corpo deseja-se, invade a noite de seduções…

Mas não conseguirei nunca alcançar a luz
que pela primeira vez sagrou nossas pupilas:
gélido, será sempre o longe que nos afasta das estrelas.

Albino Santos in “A Evocação do Teu Nome”, a págs. 53

sábado, junho 30, 2012

Amadeu Baptista

para o Amadeu Baptista

Meu caro amigo
o fim chegou como uma flecha
e não encontro a chave
para decifrar o último enigma.

Pesam-me as pálpebras e as mãos.
Houve dias em que dancei
troquei beijos
sonhei.
Agora, perto do fim
resta-me a soma das lembranças.
Passada já a última dor
acerto os passos nos últimos versos.

Não me angustia a morte
mas os rios onde não deitei os meus olhos
as pétalas que não toquei
as melodias que não ouvi
as estrelas que não espreitei.

Não vale a pena esquivar o tempo
ir buscar a cana de pesca e abalar para o rio
contar histórias aos peixes que não mordem o isco.

Resta-me ainda nos olhos
um grande reservatório de sonhos
que se embaciam.
Mas nem um vestido negro tenho
para o meu próprio luto.

Meu caro amigo
promete cobrir-me de rosas vermelhas
amanhã.
Sei que vai chover.

Não chores por mim.
Cobre-me de rosas cor de sangue
e segue para casa.
Abre a caixa de selos que te enviei pelo correio
e procura neles
as minhas impressões digitais.

No silêncio da casa
tenta tu compreender a vida
enigma de todos os meus dias
esse traço estranho que me acompanhou sempre
essa etérea luz
nem sempre chama
nem sempre ténue.

O olhar escurece-me
e nestas palavras inúteis
medito sobre o fim.

Aconchego-me na despedida
sem saber o que fui
porque nunca me forneceram
o meu livro de instruções.

Inês Ramos
in Antologia de Poesia "Meditações sobre o fim – os últimos Poemas"

sexta-feira, junho 15, 2012

Poemas Escolhidos - Graça Pires

Vicente Romero Redondo


As palavras pesam.
Um texto nunca diz a dor das pequenas coisas,
Do quotidiano entrincheirado entre compromissos,
Das tramas afectivas, do exílio anunciado
No andar inquieto das mulheres.

De rosto em rosto, a caligrafia do amor
implorou a memória das palavras encantadas
e, como se houvesse uma linguagem
de atravessar o tempo, acenderam,
sobre os dias, constelações sonoras.
Mas eu, que não adiro aos calendários
nem acredito em vogais prometidas,
eu parti, de punhos febris,
enlaçando nos braços
um futuro marginal, a qualquer lógica.
A posse da noite, onde me quero lua em todas as fases,
leva-me a glosar os medos num novelo de rimas imperfeitas.
A cidade tem pombas que me perseguem sem eu dar por isso.
Tenho um aqueduto modelado nos olhos
e um dilúvio vermelho no desenho do peito.

Graça Pires in, Poemas Escolhidos 1990-2011, pág. 57

terça-feira, maio 15, 2012

Convite

Escrevi algures no tempo sobre Graça Pires as palavras que aqui foram reproduzidas.
É com alegria no coração que vos faço o presente convite


sexta-feira, abril 27, 2012

Ser Poeta.


Ser poeta

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Áquem e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

Florbela Espanca
(1894-1930)

segunda-feira, abril 23, 2012

Escultura de palavras

Pintura de Brenda Burke


Na terra das palavras abandonadas
Dos sonhos invisíveis
E da terra suja e molhada
Ouço um grito longínquo
Que me diz ser uma parte de mim!

Respondo com a minha ingenuidade
Mostro-lhe as minhas pétalas
E ergo-me sua escrava
Orgulhosa da minha condição!

Tento tocar-lhe
Mas ele diminui o seu volume
Foge pelo imaginário
E distancia-se da minha realidade!

Choro
Dou o meu próprio grito
Ouço-me novamente
E percebo que eu própria sou vários
Que nunca me deixarão sozinha!

Poema de Teresa Poças

sábado, abril 07, 2012

O olhar descoberto




(Desligar, p.f. a música de fundo do blogue para ouvir o poema)


Nesta Páscoa, deixo-vos um poema do Pe. José Tolentino Mendonça, num trabalho realizado por José-António Moreira do Sons da Escrita