quinta-feira, setembro 29, 2005

Uma pausa, não de plumas, mas elástica

Imagem daqui

1

Uma pausa, não de plumas, mas elástica,
que demorasse em si a paz ardente
e o ardor profundo de uma alta instância.
Que fosse o esquecimento na folhagem
e a espessa transparência da matéria.
O pulso pronunciaria a amplitude
do instante inocente. A obra acender-se-ia
na inteligência dos signos mais aéreos.

2

A inadvertência pode ser um prelúdio carnal
na volúvel leitura de quem adormeceu.
O sono dá ao sangue o ócio e as cores do enxofre.
Por uma forma ausente a matéria ramifica-se
na insolência branda de umas ruínas perfeitas.
Um aroma rebenta da axila negra de um animal de vidro.
Como um veleiro de fogo uma cabeleira ondula.
A garganta do mar atira os seus pássaros de espuma.
Uma rapariga de pedra caminha entre os arbustos de fogo.
É a abundâcia da origem e o seu orvalho azul.
São as armas vegetais sobre as janelas da terra.
É a frescura do vidro nas cintilantes sílabas.

3

Na justa monotonia do meio-dia
oiço o prodígio do repouso e a paixão adormecida.
O concêntrico sopro imobiliza-se. É uma lâmpada
de pedra fulgurante. Tudo é nítido mas ausente.
O mundo todo cabe no olvido e o olvido é transparência
de um denso torso que a nostalgia acende.
No silêncio sinto numa só cadência
a vociferação e o tumulto das pálpebras e dos astros.
Pelas veias o fogo da cal é branco e liso
e a mais remota substância culmina num rumor redondo.

(Poema de António Ramos Rosa)

2 comentários:

  1. Um dos melhores Poemas de Ramos Rosa!
    Já o li na faculdade aos meus alunos. Boas escolhas!

    Aaron

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  2. Ramos Rosa é um dos poetas vivos meu preferido! Não fosse ele de Faro, donde sou natural

    **Estou vivo e escrevo sol

    Eu escrevo versos ao meio-dia
    e a morte ao sol é uma cabeleira
    que passa em fios frescos sobre a minha cara de vivo
    Estou vivo e escrevo sol
    Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
    no vazio fresco
    é porque aboli todas as mentiras
    e não sou mais que este momento puro
    a coincidência perfeita
    no acto de escrever e sol
    A vertigem única da verdade em riste
    a nulidade de todas as próximas paragens
    navego para o cimo
    tombo na claridade simples
    e os objectos atiram suas faces
    e na minha língua o sol trepida
    Melhor que beber vinho é mais claro
    ser no olhar o próprio olhar
    a maraviha é este espaço aberto
    a rua
    um grito
    a grande toalha do silêncio verde

    de Ramos Rosa em Estou Vivo E Escrevo Sol(1966)**

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