segunda-feira, março 18, 2024

Nuno Júdice - (29 de Abril 1949 - 17 de Março de 2024)





Poema

Ainda há pouco prometiam o vento
para amanhã; e a chuva, que vem com o vento,
pode vir também amanhã, quando o céu carregado
de nuvens atravessar o continente, em
direcção não sei aonde. E onde irei eu
estar, amanhã, quando essas nuvens tiverem
desaparecido, e só as árvores
com os ramos partidos lembrarem que o
vento lhes roubou as folhas? É possível que
eu possa vir a estar entre essas folhas,
ou debaixo delas, espessas com a humidade
da terra, como se fossem um manto; mas
não sei se era isso que o vento me queria dizer
quando me falava, por entre as frinchas da
porta, e só os ruídos secretos da noite
lhe respondiam. Talvez por isso, deixei-me
ficar acordado. Nem sempre se podem ouvir
esses diálogos; nem adivinhar, na manhã
futura, o destino previsível de um ser.

de, Nuno Júdice in, Meditação sobre ruínas, a págs. 93


As Letras ficaram muito mais pobres. Muito mais!

Eu, sua  incondicional de tantos anos, sinto-me vazia com esta perda.

Adeus, meu Poeta e Professor!

sábado, dezembro 24, 2022

Natal à Beira-rio

Imagem de C.Galarneau



É o braço do abeto a bater na vidraça!
É o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
a trazer-me da água a infância ressurrecta.

Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
que ficava, no cais, à noite iluminado...

Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
mais da terra fazia o norte de quem erra.

Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
à beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
precisam de Jesus, 
de Mar, ou de Poesia!


David Mourão-Ferreira, Cancioneiro de Natal,1971

sábado, abril 09, 2022

LEITURAS OBRIGATÓRIAS




Vê-se o castelo, vou poetando trivialidades

no caderno, à minha frente uma rapariga estuda o Livro

do Desassossego,

eu estou sossegado e estudo a rapariga,

não realmente bonita mas

de íris inquisidoras e surpreendente

decerto entre quatro paredes.


Se eu fosse algum dia poeta

seria uma obrigação curricular para os vindouros,

versos a acompanhar cigarros e namoros,

o livro com manchas de café, uma rapariga (filha desta?)

a ler o que eu hoje escrevi no Chiado

e alguém noutra mesa a fazer

um poema acerca disso.



Pedro Mexia 

in, “Eliot e Outras Observações” 

a pág. 15- Gótica Editores - 2003




Fotografia: Vista aérea de Lisboa, retirada da net

sexta-feira, outubro 01, 2021

OUTUBRO



Outubro a abrir brechas na memória

Pano de fundo de loucas paixões

A violar-nos por dentro

Metáfora, hipérbole, paradoxo

Folha arrancada a imaginário calendário

Este frio na alma a gritar solidão!

A chuva teima em cair

Pérolas de nácar escorrem te do rosto

Cobre a névoa teus passos

Que se afastam--------já não és

Corpos de pedra no jardim dos sentidos

Visto-me do silencio que não queremos quebrar

Partimo-nos por dentro

Desmontamos pedra a pedra a catedral do tempo

E eu num prenuncio de equinócio

Fico- me aqui a contar horas perdidas 


Desenho e Poema de Wanda Campos

quarta-feira, setembro 29, 2021

A MEIO DO CADERNO

O tempo voa. 
Quase, quase, no final do ano, o Outono chegou e o Outubro vem a caminho.
E a poesia abre, de novo, as janelas a esta casa.

Boas leituras.




Ao meio das folhas, no meio das vozes
que abrem e cantam a clareira, a corda
de algodão delgada e branca que atravessou
quatro orifícios, quatro furos petrolíferos,
dá o nó e o laço
que seguram as páginas de terra e
formam o caderno. Nas praias imóveis
nas suas ondas quietas, na rugosidade
branca das suas verdes folhas, podes
agora
escrever na leitura o livro
entre ti e mim tecido/entretecido
das sílabas vivas do surdo clamor
do mundo, do vivo enquanto
vivo.

Beija o anel do luar e
do sol: a música do mundo
presa na haste viva que o livro
hasteia branca e vermelha.



Poema de Manuel Gusmão


 


 Pintura de Susan Bourdet

quarta-feira, dezembro 30, 2020

Feliz Ano Novo!




Já ouvi doze vezes dar a hora

No relógio que diz que é meio-dia

A toda a gente que aqui perto mora.

(O comentário é do Camões agora:)

«Tanto que espera! Tanto que confia!»

Como o nosso Camões, qualquer podia

Ter dito aquilo, até outrora.

E ainda é uma grande coisa a ironia.


Fernando Pessoa in, "Poesias Inéditas", a págs. 605

Obras Completas, Vol. I


sexta-feira, dezembro 11, 2020

NATIVIDADE

 

Presépio pessoal


Arde no coração da noite

A ritual fogueira que anuncia

O eterno milagre

Do nascimento.

Batida pelo vento,

Que da cinza das brasas faz semente,

É um sol sem firmamento,

Directamente

Aceso

E preso

À terra

Por mãos humanas.

De raízes profanas,

Lume de vida a bafejar a vida,

O seu calor aquece

A única certeza que merece

Ser aquecida...



 Miguel Torga in, Dário VIII, a págs. 178

(Vila Cova, 24 de Dezembro de 1958)






 

quinta-feira, novembro 05, 2020

Espanto

Maria Teresa Horta



Saber que te perdi
é mais que
isto

é mais que este
sabor
contraditório

é mais que todo o espaço

é mais que agora

é mais do que o
teu corpo
já retido

e lento é este espanto
e tão parecido
com aquele prazer breve
antigo
que o rasto dos teus dentes
não desprende

ainda mais que dor
ou suicídio

saber que te perdi
é mais que isto

ainda mais que ferida
mais que morte


 Maria Teresa Horta


 Escritora, poetisa e jornalista recebeu a Medalha de Mérito Cultural.

(clicar no nome para aceder à noticia, por favor)


quarta-feira, outubro 28, 2020

Devia morrer-se de outra maneira.





Devia morrer-se de outra maneira.

Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.

Ou em nuvens.


Quando nos sentíssemos cansados,

fartos do mesmo sol, a fingir de novo todas as manhãs,

convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite

para o ritual do Grande Desfazer:

“Fulano de tal comunica a V. Exa. que vai transformar-se

em nuvem hoje às 9horas. Traje de passeio”.


E então, solenemente, com passos de reter tempo,

fatos escuros, olhos de lua de cerimónia,

viríamos todos assistir à despedida.

Apertos de mãos quentes.

Ternura de calafrio.


“Adeus! Adeus!”


E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,

numa lassidão de arrancar raízes…

primeiro, os olhos… em seguida, os lábios…

depois os cabelos… a carne, em vez de apodrecer,

começaria a transfigurar-se em fumo…

tão leve… tão subtil… tão pólen…

como aquela nuvem além vêem?


Nesta tarde de Outono ainda tocada por um vento de lábios azuis…



José Gomes Ferreira


Pintura de Kasia Derwinska

quinta-feira, setembro 24, 2020

Aonde - Mário Cláudio (ª)






Aonde teus passos me levam,

aí, o voo segue da noite.


Escrevo as linhas do percurso, e

toco, a teu lado, entre fetos e

urtigas, a câmara escura da casa.


Rasga o comboio os campos manchegos,

com uma toalha húmida e 

um livro aberto, a cobrir a nudez que

sofremos.


E desenhas o mapa dos líquenes, e

aprendes, a meu lado, sobre o esqueleto

dos reis, a aresta antiga das

torres.


Aonde os anjos escalam o oiro das uvas,

aí, o horizonte morre da manha.





 in, Doze Mapas, (Poesia Reunida 1969-2019)

a págs. 245, (Edição Glaciar)



 

 




(ª) Mário Cláudio , para ler sobre a biografia do autor, clique no nome, por favor.
     Também o encontra Aqui (Facebook)



Pintura de Jesús Miguel Lozano Cantó

terça-feira, junho 16, 2020

ADIAMENTO - (ª) David Mourão-Ferreira

Fotografia de João Manuel


Olhar-te bem nos olhos: que voragem!
Ouvir-te a voz na alma: que estridência!
É tão difícil termos coragem
de nos vermos enfim sem complacência.

É tão difícil regressar de viagem,
e descobrir no rastro tanta ausência...
Mas os meus olhos, súbito, reagem.
À tua voz chega o silêncio e vence-a.

Nos pulsos vibra ainda o mesmo rio
que no delta dos dedos se extasia
e moroso reflui ao coração.

O gesto de acusar-te? Suspendi-o.
Mas foi só aguardando melhor dia
em que tenha lugar a execução.




(24/02/1927 - 16/06/1996

in, "Obra poética" a págs. 171/172
Editorial Presença






(ª) David Mourão-Ferreirapara ler sobre a biografia do autor, clique no nome, por favor.

terça-feira, maio 05, 2020

Quero ver o Sol! - Maria Isabel Loureiro



O mar está perto,
Sinto o sussurro das ondas ,
O riso das crianças,
A brisa marítima que passa,
O calor do sol a aquecer a terra…
E que me dá alento!
Alento para romper este torrão que pesa sobre mim,
Alento para furar por entre as pedras lisas
Que cobrem a terra. 
E rompo por entre elas.
Faço um esforço!…
Um pouco mais…
E mais…
...Cheguei!
E o botão de flor que sou,
Recebe a luz do Sol,
O Sol que me dá as boas vindas,
e que finalmente vejo!
Abro as minhas pétalas e ofereço-as ao Sol! 
O Sol pinta-as com as suas cores!
Sou agora uma bela flor!




Imagem: Fotografia de Maria Isabel Loureiro

quinta-feira, abril 09, 2020

Lisboa Ainda - Manuel Alegre

Lisboa 

Lisboa não tem beijos nem abraços
não tem risos nem esplanadas
não tem passos
nem raparigas e rapazes de mãos dadas
tem praças cheias de ninguém
ainda tem sol mas não tem
nem gaivota de Amália nem canoa
sem restaurantes sem bares nem cinemas
ainda é fado ainda é poemas
fechada dentro de si mesma ainda é Lisboa
cidade aberta
ainda é Lisboa de Pessoa alegre e triste
e em cada rua deserta
ainda resiste.

Manuel Alegre, poema escrito em 20 de Março de 2020 

quarta-feira, março 11, 2020

Noite por ti despida - Casimiro de Brito


Diego Fernandez



Adulta é a noite onde cresce
o teu corpo azul. A claridade
que me dás em troca dos meus ombros
cansados. Reflexos coloridos. Amei
o amor. Amei-te meu amor sobre ervas
orvalhadas. Não eras tu porém
o fim dessa estrada sem fim.
Canto apenas (enquanto os álamos
amadurecem) a transparência, o caminho.
A noite por ti despida. Lume e perfume
do sol. Íntimo rumor do mundo.


Casimiro de Brito, in "Solidão Imperfeita"

terça-feira, junho 18, 2019

Corpo de Esperança - Victor Matos e Sá

Henri Matisse


CORPO DE ESPERANÇA

12

Começam por ti todos os versos...

...e um dia as aves voarão o céu até os teus olhos,
as crianças hão-de pisar teu corpo de alegria

com seus risos, seus tácitos encontros com o invisível

e seu secreto esquecimento.

Num chão de coisas desapercebidas

terão passado sobre ti os reinos, as filosofias e os namorados,


e tu repousas, nua, no coração do Silêncio, 
como uma estrela dentro do céu. 

de, Victor Matos e Sá


in,  “Poemas de Amor”
a págs. 50