sexta-feira, setembro 30, 2005

Natália Correia

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Com a paixão desconcerta o pensamento
E ama. É fisica a profundidade.
Inspira Vénus o desejo ardente
Para nos mover à ultima ansiedade.

Num ser univoco o amor enleia
Os corpos nus. Na área da magia
Rompe a brancura; e cresce, ao tempo alheia,
A onda do prazer, causa da vida.

Segura no infinito a carne aberta
Atrai o sangue que corre para a verdade
Procurando na joia mais secreta
Do corpo a inicial da eternidade.

Um sol em agonia a tarde gera
E vai o espasmo ao mais fundo da alma
Buscar o grito casto que se enterra
Na terra femea e faz cair a mascara

Langues e lividas esfolham-se então nos corpos
estrelas caidas no trono da loucura.
O sangue enrosca-se e faz sair dos poros
Um fumo de almas que mastigam nuvens.

quinta-feira, setembro 29, 2005

Uma pausa, não de plumas, mas elástica

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1

Uma pausa, não de plumas, mas elástica,
que demorasse em si a paz ardente
e o ardor profundo de uma alta instância.
Que fosse o esquecimento na folhagem
e a espessa transparência da matéria.
O pulso pronunciaria a amplitude
do instante inocente. A obra acender-se-ia
na inteligência dos signos mais aéreos.

2

A inadvertência pode ser um prelúdio carnal
na volúvel leitura de quem adormeceu.
O sono dá ao sangue o ócio e as cores do enxofre.
Por uma forma ausente a matéria ramifica-se
na insolência branda de umas ruínas perfeitas.
Um aroma rebenta da axila negra de um animal de vidro.
Como um veleiro de fogo uma cabeleira ondula.
A garganta do mar atira os seus pássaros de espuma.
Uma rapariga de pedra caminha entre os arbustos de fogo.
É a abundâcia da origem e o seu orvalho azul.
São as armas vegetais sobre as janelas da terra.
É a frescura do vidro nas cintilantes sílabas.

3

Na justa monotonia do meio-dia
oiço o prodígio do repouso e a paixão adormecida.
O concêntrico sopro imobiliza-se. É uma lâmpada
de pedra fulgurante. Tudo é nítido mas ausente.
O mundo todo cabe no olvido e o olvido é transparência
de um denso torso que a nostalgia acende.
No silêncio sinto numa só cadência
a vociferação e o tumulto das pálpebras e dos astros.
Pelas veias o fogo da cal é branco e liso
e a mais remota substância culmina num rumor redondo.

(Poema de António Ramos Rosa)

quarta-feira, setembro 28, 2005

Gota de água


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Eu, quando choro,
não choro eu.
Chora aquilo que nos homens
em todo o tempo sofreu.
as lágrimas são minhas
mas o choro não é meu.

(Poema de António Gedeão)

terça-feira, setembro 27, 2005

A Arte Poética

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A poesia do abstracto...
Talvez.
Mas um pouco de calor,
A exaltação de cada momento
É melhor.
Quando sopra o vento
Há um corpo na lufada;
Quando o fogo alteou
A primeira fogueira,
Apagando-se fica alguma coisa queimada.
É melhor...
Uma ideia
Só como sangue de problemas;
No mais, não,
Não me interessa.
Uma ideia
Vale como promessa
E prometer é arquear
A grande flecha.
O flanco das coisas só sangrando me comove,
E uma pergunta é dolorida
Quando abre brecha.
Abstracto!
O abstracto é sempre redução,
Secura;
Perde -
E diante de mim o mar que se levanta é verde:
Molha e amplia...
Por isso, não:
Nem o abstracto nem o concreto
São propriamente poesia.
A poesia é outra coisa.
Poesia e abstracto, não.

(Poema de Vitorino Nemésio)

segunda-feira, setembro 26, 2005

Eugénio de Andrade

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Eugénio de Andrade (José Fontinhas (nome verdadeiro de Eugénio de Andrade) nasceu a 19 de Janeiro de 1923 em Póvoa de Atalaia, uma pequena aldeia da Beira Baixa ). Poeta e tradutor. Publicou mais de duas dezenas de livros entre os quais "As Mãos e os Frutos" (1948), "Rente ao Dizer" (1992), e "Os Sulcos da Sede" (2001). Faleceu em Junho de 2005. Entre a sua vasta poesia, escolhi esta...


Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

domingo, setembro 25, 2005

Sê tu a palavra, (...o Início...)

Início este Blog com um poema de Eugénio de Andrade falecido em Junho deste ano. 

Esta é a minha homenagem.



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1.
Sê tu a palavra,
branca rosa brava.

2.
Só o desejo é matinal.

3.
Poupar o coração
é permitir à morte
coroar-se de alegria.

4.
Morre
de ter ousado
na água amar o fogo.

5.
Beber-te a sede e partir
- eu sou de tão longe.

6.
Da chama à espada
o caminho é solitário.

7.
Que me quereis,
se me não dais
o que é tão meu?


 de. Eugénio de Andrade,