sexta-feira, agosto 11, 2006

A Esmola...


Lisboa - Óleo sobre tela de Francisco Smith(1920)


Mas que criança alegre ali vinha,
Arrastada pela mão da sua presumível mãe,
Com o cabelo amarelo em desalinho,
A tagarelar e a bisbilhotar
Os artigos expostos nas prateleiras.
Eu observava a cena,
Enquanto esperava ser chamado
Para levantar uma encomenda
Que o carteiro não me trouxe a casa -
Preferiu deixar o aviso
Na minha caixa de correio.
A mãe, muito magra, deambulava
Com uma caixa de sapatos verde,
Sem tampa, estendia-a às pessoas
Para que nela depositassem,
Por caridade, uma esmola.
Muito jovem, diria mesmo, jovem demais.
Para já ter uma filha de dois ou três anos?
Até podia ser a irmã mais velha de uma família cigana
Que faz da mendicidade profissão.
Não havia sinal de sofrimento na cara da pedinte,
Saiu cedo para trabalhar (acho)
E à tarde, quando regressar,
Alguém irá pedir-lhe contas
“E se não for?”, pensei.
Talvez seja mesmo mãe da criança
E esteja sozinha neste mundo,
Que insensível sou ao sofrimento alheio.
Que merda!
Aproximou-se de mim por trás
E estendeu-me a caixa.
Olhei de lado para dentro dela.
Vazia, completamente vazia, a caixa!
Depois de ter passado por dez ou mais pessoas!
Mundo vadio, que mundo bestial!
Porque é que um ser humano,
Que tem uma criança tão alegre e saudável,
Não há-de dispor de meios
Para assegurar a sua existência
E a do filho sem precisar pedir?
Nem percebo porque é que esta situação
Tão corriqueira entre nós,
Me causa tamanha dor!
– Eu próprio já recusei tantas esmolas,
Não, uma esmola destas acho que não.
Que posso fazer?
Sei que a minha esmola não é solução.
Se lhe der a esmola,
Apenas fico de consciência aliviada,
Ela, ficará na mesma
Hesitei. Numa fracção de segundo, ainda pensei:
“A vida tem uma duração finita, são dias, são anos,
São décadas e pouco mais; se eu lhe der uma esmola,
Talvez ela e a criança cheguem ao fim do dia sem fome;
(Ao fim e ao cabo nós todos
Só queremos chegar ao fim dos dias sem fome.)
Estreei a caixa vazia das moedas com uma moeda,
E ela lá continuou a sua ronda sem espanto.
Desta vez, já outros seguiram o meu exemplo,
E puseram mais moedas na caixa sem vazio.
Saíram as duas (mãe e filha?),
E fiquei a espreitá-las
Através da fachada envidraçada dos correios.
Atravessaram a rua para o outro lado,
E vi-as entrar no café de defronte,
Todas contentes. Afinal tinham mesmo fome.
E veio-me à mente o sempiterno verso
Que enforma a minha própria mente:
"Mas as crianças, Deus meu…"
Só então percebi plenamente
Porque tive tanta pena daquela gente.


(Poema de Henrique Sousa que apesar de gostar muito mais de escrever em prosa, tendo até alguns livros publicados, teve a gentileza de me enviar este poema, diria antes, este flash do dia a dia de quem percorre caminhos e a quem peço desculpa pela ousadia de o postar… )

15 comentários:

  1. Cheguei aqui através da página "DIGNIDADE".
    Pelo que me foi dado ler, não há como não te dar a saber a minha admiração.
    São os amantes da poesia, como tu, que merecem louros pelo amor que demonstram e pela divulgação que fazem da "Poesia Portuguesa".
    Um abraço

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  2. Gostaria de adicionar-te à lista das páginas que visito. E vou fazê-lo, se permitires.
    Um abraço

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  3. fiquei muito sensibilizado a ler este poema; fizeste-me lembrar os meninos das favelas do meu Brasil.
    Parabelizo a Poesia Portuguesa por dar assim a conhecer os poetas de Portugal e ao autor pela sensibilidade demonstrada.
    Abraço a vc's

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  4. Intenso...
    Beijos e bom fim de semana

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  5. Quadro perfeito elaborado pelo meu caro TNT de situações gritantes que vemos no dia a dia, em cada semáforo, em cada esquina, de crianças de cara suja, olhos tristes, por vezes pedindo só um afago, um sorriso, ou um pouci de pão. Mas quanras vezes passamos por elas, sem as olhar na profundeza dos seus olhos? Ver aqui retratada uma pintura de Francisco Smith, neste poema, denota o teu bom gosto e a tua sensibilidade;parabéns ao TNT e a ti Poesia pela partilha cada vez maior que fazes neste blogue

    Cpm do J. N.

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  6. Vim deixar um beijão a vc e desejar bom fim de semana

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  7. Gostei muito deste poema; fala connosco, do dia a dia, doque nem sempre gostamos de ver,mas também da razão de viver, do desejo de mudança, da frustração que sentimos, mas também de acreditar que sempre podemos mudar e sobretudo doque podemos fazer por nós, porque se assim não suceder , como fazemos pelos outros?
    (este mundo dos blogs, é uma das maravilhas dum mundo que continuam a chamar de irreal ou virtual; sabem que a mente tamém pode sê-lo, em cada ser que cria um mundo seu e vive nele?) beijso e um fim de semana cheio de estrelas!

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  8. Apesar de retratar uma realidade bem triste li o texto com um sorriso. Porque está ali tudo tal como é, na ordem natural das coisas: nú e cru. Parabéns pela escolha. Esperemos que em tempo de férias todas as pessoas se sensibilizem deste modo, porque não nos custa nada e porque muitas vezes o mundo não se apercebe que bastaria abdicar de um café ou uma ida ao cinema para deixar por um dia que seja, num rosto de uma criança uns olhos a brilhar.

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  9. Um texto pertinente. Dá para comentar de muitas formas. Talvez a mais simples 'sofrei que alcançareis o reino dos céus'. Por esta teoria o sofrimento é uma benesse.
    Fica bem.
    Um beijinho para ti.
    manuel
    Ah, obrigado pela tua visita e pelos lindos poemas que deixaste.

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  10. que saudades eu tinha de passar por aqui. Hoje consolei-me.


    //(~_~)\\ um beijo da Titas

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  11. Não sendo este o tipo de poesia que consumo lá na minha casota, gosto de vir aqui. Grandes poetas existem na net (pena não me ligarem nenhuma)

    §(~_~)§ beijo da Afrodite
    (uma carinha d'anjo num corpo espectacular, com tudo no sítio, muito dentro do prazo, sem aditivos nem silicones)

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  12. Não sendo este o tipo de poesia que consumo lá na minha casota, gosto de vir aqui. Grandes poetas existem na net (pena não me ligarem nenhuma)

    §(~_~)§ beijo da Afrodite
    (uma carinha d'anjo num corpo espectacular, com tudo no sítio, muito dentro do prazo, sem aditivos nem silicones)

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  13. e ainda bem que teve o atrevimento pois trata-se dum belo texto poético, que dá prazer a inquietação a quem o lê.
    Beijos
    Teresa David

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  14. Por vezes... um poema. Sim, porque não? O meu obrigado a todos que comentaram e especialmente a quem se deu ao trabalho de não me ignorar e que teve a ousadia...

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  15. Que mais poético há que o nosso quotidiano? Basta alguma sensibilidade para nos apercebermos disso...e ver...realmente ver e olhar em volta...um grande poema...parabéns ao poeta e à poesia portuguesas...

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