Um texto provavelmente longo, para quem aprecie leituras breves...
Mas vale a pena ler todo o seu conteúdo.
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Desenho de Jason Morrow |
O QUE SEI DE POESIA
Não sei falar de literatura. Não sei falar de poesia. Sobretudo não sei se a poesia tem alguma coisa a ver com a literatura. Talvez esteja antes ou depois da literatura. Sei que a poesia não se explica, a poesia implica, como costuma dizer a minha amiga Sophia de Mello Breyner. Sei que a energia, como diz o meu amigo Herberto Hélder, é a essência do mundo e que “os ritmos em que se exprime constituem a forma do mundo". Sei, como o poeta russo Mandelstam, que "escrever é um acontecimento cósmico". E que cada palavra é um pedaço de universo. Ou como dizia Klebnikov: "Na natureza da palavra viva, esconde-se a matéria luminosa do universo." Talvez tudo isto seja a poesia. Ou talvez ela não seja mais do que o primeiro verso, aquele que nos é dado, como sempre dizia Miguel Torga, porque os outros têm de ser conquistados. Talvez tudo esteja nesse primeiro verso, que é o instante da revelação e da relação mágica com o mundo através da palavra poética. Talvez o poeta, afinal, não seja muito diferente daquele sujeito que vemos nas tribos primitivas, de plumas na cabeça, repetindo palavras mágicas enquanto dança e pula ao ritmo de um tambor. O poeta é esse feiticeiro. Dança com palavras ao som de um ritmo que só ele entende. Ou é talvez o adivinho.
Como já não pode ler nas vísceras das vítimas, procura decifrar os sinais dos tempos através de múltiplos sentidos ou dos semi-sentidos da palavra. De qualquer modo, como nas sociedades primitivas, que tinham uma concepção mágica do mundo, o poeta de hoje é como esse xamã antigo que, através da repetição rítmica de palavras e imagens, convoca as forças benfazejas ou tenta exorcizar as forcas maléficas.
A poesia é, assim, antes de tudo, uma forma de medição. Um presságio do sul, como diz o meu amigo José Manuel Mendes. Uma encantada, encantatória e desesperada tentativa de captar a essência do mundo e de, através da palavra, "mudar a vida", como queria Rimbaud. Uma forma de alquimia. Que procura o impossível. Ou seja: o verso que não há.
A poesia é também a língua. E para mim a língua começa em Camões, que tinha uma flauta mágica.
A música secreta da língua. A arte e o ofício da língua e da linguagem.. Nem foi por acaso que Dante chamou a Arnaut Daniel "il migiior fabbro". O poeta, dizia Cioran, "é aquele que leva a sério a linguagem". E o que é levar a sério a linguagem? Eu creio que é estar atento aos sinais. Os sinais mágicos da palavra. Os sinais da essência do mundo que por vezes se revelam na palavra poética. Ou talvez o duende e aquela ferida de que falava Lorca. Porque o poeta traz em si uma ferida e o duende por vezes ouve "sonidos negros". É então que a poesia acontece.
Isto é o que sei de poesia. Talvez seja muito pouco. Mas não sei se é possível saber mais.
Manuel Alegre, in “Obra Poética”,
a págs 903/904 (2000)
(Texto escrito e lido durante uma sessão consagrada a "Trinta Anos de Poesia” na Faculdade de Letras da Universidade Católica de Viseu, Maio de 1996)
Maravilhoso texto do Manuel Alegre. E quem falaria melhor sobre poesia?
ResponderEliminarUm beijo MM.
"É então que a poesia acontece"
ResponderEliminar"É então que a poesia acontece"
ResponderEliminarPoesía é vida, em tudo e por tudo existe poesia...parabéns pelo Blog
ResponderEliminarPoesia no seu melhor... até na prosa... jose manuel leite sá - rouxinoldebernardim.blogspot.com
ResponderEliminarBom texto sobre a poesía, é isso e muito mais! Rosa Lía
ResponderEliminarGosto imenso de o ler e agradeço-te pela homenagem merecida. Uma voz de trovão que leva a sério a linguagem.
ResponderEliminarTenho uma sugestão para as tuas férias.
Beijos
..."Talvez tudo esteja nesse primeiro verso, que é o instante da revelação..."
ResponderEliminaro verbo da vida...isso é poesia
Realmente, dizer que não se produz poesia porque ela já é sem se fazer, e apenas se a constada, é uma das versões que me quedo sem encontrar definição. Penso que poesia é um fenômeno psico-filosófico. Uma relação entre o exterior e o subjetivo de um indivíduo que capta algo belo, transfere ao papel sob forma de versos ou palavras e retorna ao exterior a beleza elaborada, onde um segundo indivíduo, a relaciona em sua psique com o seu senso do belo filosófico ou sensorial. Quanto a mais indivíduos este primeiro conseguir transmitir o sentimento de beleza, mais ou menos poeta ele será. O mestre Fernando Pessoa agradou a uma maioria por ser tão eclético, sendo ele vários. Cordialmente. Laerte (Silo).
ResponderEliminarpoesia IMPLICA :) adorei isso! um grande abraço, Clotilde Zingali
ResponderEliminarSem duvida a poesia não se explica...ela implica
ResponderEliminarSoberbo texto de Alegre
Abraço fraterno
FC
Que belo texto!!!! Gostaria de compartilhar com você, também, meu blog de poesias autorais... Sou Rodrigo Conte Cunha, brasileiro, e tenho um blog com vários textos publicados. Muito grato. www.conteatemil.blogspot.com.br
ResponderEliminarOi amigo,
ResponderEliminarQuanto tempo!
Não gosto muito de poesia, gosto de texto muito críticos, mas às vezes sonho na poesia. Foi o que fiz hoje: poesia.
Beijos no coração
Lua Singular
A poesia é uma ciência misteriosa ... mas bem profunda...
ResponderEliminarMuito bom este texto
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