quarta-feira, outubro 28, 2020

Devia morrer-se de outra maneira.





Devia morrer-se de outra maneira.

Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.

Ou em nuvens.


Quando nos sentíssemos cansados,

fartos do mesmo sol, a fingir de novo todas as manhãs,

convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite

para o ritual do Grande Desfazer:

“Fulano de tal comunica a V. Exa. que vai transformar-se

em nuvem hoje às 9horas. Traje de passeio”.


E então, solenemente, com passos de reter tempo,

fatos escuros, olhos de lua de cerimónia,

viríamos todos assistir à despedida.

Apertos de mãos quentes.

Ternura de calafrio.


“Adeus! Adeus!”


E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,

numa lassidão de arrancar raízes…

primeiro, os olhos… em seguida, os lábios…

depois os cabelos… a carne, em vez de apodrecer,

começaria a transfigurar-se em fumo…

tão leve… tão subtil… tão pólen…

como aquela nuvem além vêem?


Nesta tarde de Outono ainda tocada por um vento de lábios azuis…



José Gomes Ferreira


Pintura de Kasia Derwinska

quinta-feira, setembro 24, 2020

Aonde - Mário Cláudio (ª)






Aonde teus passos me levam,

aí, o voo segue da noite.


Escrevo as linhas do percurso, e

toco, a teu lado, entre fetos e

urtigas, a câmara escura da casa.


Rasga o comboio os campos manchegos,

com uma toalha húmida e 

um livro aberto, a cobrir a nudez que

sofremos.


E desenhas o mapa dos líquenes, e

aprendes, a meu lado, sobre o esqueleto

dos reis, a aresta antiga das

torres.


Aonde os anjos escalam o oiro das uvas,

aí, o horizonte morre da manha.





 in, Doze Mapas, (Poesia Reunida 1969-2019)

a págs. 245, (Edição Glaciar)



 

 




(ª) Mário Cláudio , para ler sobre a biografia do autor, clique no nome, por favor.
     Também o encontra Aqui (Facebook)



Pintura de Jesús Miguel Lozano Cantó

terça-feira, junho 16, 2020

ADIAMENTO - (ª) David Mourão-Ferreira

Fotografia de João Manuel


Olhar-te bem nos olhos: que voragem!
Ouvir-te a voz na alma: que estridência!
É tão difícil termos coragem
de nos vermos enfim sem complacência.

É tão difícil regressar de viagem,
e descobrir no rastro tanta ausência...
Mas os meus olhos, súbito, reagem.
À tua voz chega o silêncio e vence-a.

Nos pulsos vibra ainda o mesmo rio
que no delta dos dedos se extasia
e moroso reflui ao coração.

O gesto de acusar-te? Suspendi-o.
Mas foi só aguardando melhor dia
em que tenha lugar a execução.




(24/02/1927 - 16/06/1996

in, "Obra poética" a págs. 171/172
Editorial Presença






(ª) David Mourão-Ferreirapara ler sobre a biografia do autor, clique no nome, por favor.

terça-feira, maio 05, 2020

Quero ver o Sol! - Maria Isabel Loureiro



O mar está perto,
Sinto o sussurro das ondas ,
O riso das crianças,
A brisa marítima que passa,
O calor do sol a aquecer a terra…
E que me dá alento!
Alento para romper este torrão que pesa sobre mim,
Alento para furar por entre as pedras lisas
Que cobrem a terra. 
E rompo por entre elas.
Faço um esforço!…
Um pouco mais…
E mais…
...Cheguei!
E o botão de flor que sou,
Recebe a luz do Sol,
O Sol que me dá as boas vindas,
e que finalmente vejo!
Abro as minhas pétalas e ofereço-as ao Sol! 
O Sol pinta-as com as suas cores!
Sou agora uma bela flor!




Imagem: Fotografia de Maria Isabel Loureiro

quinta-feira, abril 09, 2020

Lisboa Ainda - Manuel Alegre

Lisboa 

Lisboa não tem beijos nem abraços
não tem risos nem esplanadas
não tem passos
nem raparigas e rapazes de mãos dadas
tem praças cheias de ninguém
ainda tem sol mas não tem
nem gaivota de Amália nem canoa
sem restaurantes sem bares nem cinemas
ainda é fado ainda é poemas
fechada dentro de si mesma ainda é Lisboa
cidade aberta
ainda é Lisboa de Pessoa alegre e triste
e em cada rua deserta
ainda resiste.

Manuel Alegre, poema escrito em 20 de Março de 2020 

quarta-feira, março 11, 2020

Noite por ti despida - Casimiro de Brito


Diego Fernandez



Adulta é a noite onde cresce
o teu corpo azul. A claridade
que me dás em troca dos meus ombros
cansados. Reflexos coloridos. Amei
o amor. Amei-te meu amor sobre ervas
orvalhadas. Não eras tu porém
o fim dessa estrada sem fim.
Canto apenas (enquanto os álamos
amadurecem) a transparência, o caminho.
A noite por ti despida. Lume e perfume
do sol. Íntimo rumor do mundo.


Casimiro de Brito, in "Solidão Imperfeita"

terça-feira, junho 18, 2019

Corpo de Esperança - Victor Matos e Sá

Henri Matisse


CORPO DE ESPERANÇA

12

Começam por ti todos os versos...

...e um dia as aves voarão o céu até os teus olhos,
as crianças hão-de pisar teu corpo de alegria

com seus risos, seus tácitos encontros com o invisível

e seu secreto esquecimento.

Num chão de coisas desapercebidas

terão passado sobre ti os reinos, as filosofias e os namorados,


e tu repousas, nua, no coração do Silêncio, 
como uma estrela dentro do céu. 

de, Victor Matos e Sá


in,  “Poemas de Amor”
a págs. 50


sexta-feira, fevereiro 15, 2019

Tudo - Saul Dias




Um poema 

quase sem palavras.
Um esquema
de indefinidos traços.
O ecoar de um som
talvez nunca vibrado.
Um retrato
feito com o nada disto,
com tudo isto.

Poema “Tudo” de Saul Dias in, Tarde Azul, 
a págs. 141



Imagem: Óleo de Júlio Saul Dias “Poeta e Rapariga”, (1982)

segunda-feira, dezembro 24, 2018

Natal 2018






Ode à Paz


Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego,
dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz,
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida!


Natália Correia
in O Sol nas Noites e o Luar nos Dias, II

sábado, maio 12, 2018

fronteira - Joaquim Amândio Santos



Desenho de Christine Alfery

quando conversam, falam a mesma linguagem,

usam o mesmo tom.
entoam a mesma intensidade.




falam para lá das línguas do mundo, 


num momento sem tempo,

num local sem fronteira,
num espaço onde só cabe o namoro,
no momento de extase entre a brisa do vento 


e as folhas das árvores,

no deleite transmitido entre os bicos de pássaros 


em amores de primavera,

no gozo emanado entre os dedos das mãos que saboreiam,
até a infinitésima parte do segundo ,
que antecede o toque que preside ao começo do seu entrelaçar,
do segredo revelado entre o sussurro das ondas e a areia.




em cada movimento um enamorado mar!




falo então comigo. tanto.




tornei-me um explorador em euforia
por ter descoberto o mais intenso palpitar.
batendo incessante.




o coração. meu.

Poema de Joaquim Amândio Santos 
in, "pedra sobre pedras" s/nº. de págs.

quinta-feira, abril 26, 2018

Em uníssono - Graça Pires

Moises Saman


Indagamos, em uníssono, o avesso dos dias
retalhados por mãos adversas,
para não nos equivocarmos
com o rosto deste mundo 
em constante calafrio, em arriscada deriva.
Porque estes são tempos exasperantes
de perder as pátrias e as casas
e os pais e os irmãos e os amigos
e os nomes e a memória.
E nas imensas planícies enegrecidas
é desabrido o som dos que bradam
quando as crianças ensurdecem no silêncio.
A meia-haste, arvoramos a rugosidade
das cinzas e o rasgão do medo,
para não permanecermos alheios
à saturação dos que sangram,
dos que tombam, dos que resistem.

In: CONTINUUM: Antologia poética. Pinturas de Luís Liberato, fotografias de Soledade Centeno. Braga: Poética, 2018, p. 123

quarta-feira, abril 04, 2018

JURA - Antero de Quental

Judith Leyster

Pelas rugas da fronte que medita...
Pelo olhar que interroga — e não vê nada...
Pela miséria e pela mão gelada
Que apaga a estrela que nossa alma fita...

Pelo estertor da chama que crepita
No último arranco duma luz minguada...
Pelo grito feroz da abandonada
Que um momento de amante fez maldita...

Por quanto há de fatal, por quanto há misto
De sombra e de pavor sob uma lousa...
Oh pomba meiga, pomba da esperança!

Eu te juro, menina, tenho visto
Coisas terríveis — mas jamais vi coisa
Mais feroz do que um riso de criança!

Antero de Quental


quarta-feira, março 21, 2018

Não sei quantas almas tenho.

Neste Dia Mundial da Poesia, volto a abrir as portas deste Blogue.
Uma ausência de quase dois anos.
Causas?
Tantas!
Desde emocionais a pessoais em todas as minhas almas.
Quem me conhece pessoalmente (e já é tanta gente!) sabe do que falo.
Mas voltei. E, creio, para ficar.
Não sou de promessas fáceis como alguns políticos. 
Sou humana e, como tal, posso falhar.
Para já regresso com Fernando Pessoa e, quem sabe, todas as suas almas.
Agradeço, desde já, ao Blogue Do Tempo da Outra Senhora, do Hernâni Matos, cuja publicação me inspirou a voltar aqui.
Fernando Pessoa, Bernardo Soares, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.
Caricatura de Rui Pimentel.



Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.

Fernando Pessoa in, Novas Poesias Inéditas, 
a págs. 680/681
Obras Completas, Vol. II

terça-feira, maio 24, 2016

O QUE SEI DE POESIA

Um texto provavelmente longo, para quem aprecie leituras breves... 
Mas vale a pena ler todo o seu conteúdo.


Desenho de Jason Morrow


O QUE SEI DE POESIA

Não sei falar de literatura. Não sei falar de poesia. Sobretudo não sei se a poesia tem alguma coisa a ver com a literatura. Talvez esteja antes ou depois da literatura. Sei que a poesia não se explica, a poesia implica, como costuma dizer a minha amiga Sophia de Mello Breyner. Sei que a energia, como diz o meu amigo Herberto Hélder, é a essência do mundo e que “os rit­mos em que se exprime constituem a forma do mundo". Sei, como o poeta russo Mandelstam, que "escrever é um acontecimento cósmico". E que cada palavra é um pedaço de universo. Ou como dizia Klebnikov: "Na natureza da palavra viva, esconde-se a matéria luminosa do universo." Talvez tudo isto seja a poesia. Ou talvez ela não seja mais do que o primeiro verso, aquele que nos é dado, como sempre dizia Miguel Torga, porque os outros têm de ser conquistados. Talvez tudo esteja nesse primeiro verso, que é o instante da revelação e da relação mágica com o mundo através da palavra poética. Talvez o poeta, afinal, não seja muito diferente daquele sujeito que vemos nas tribos primitivas, de plumas na cabeça, repetindo palavras mágicas enquanto dança e pula ao ritmo de um tambor. O poeta é esse feiticeiro. Dança com palavras ao som de um ritmo que só ele entende. Ou é talvez o adivinho. 

Como já não pode ler nas vísceras das vítimas, procura decifrar os sinais dos tempos através de múltiplos sentidos ou dos semi-sentidos da palavra. De qualquer modo, como nas sociedades primitivas, que tinham uma concepção mágica do mundo, o poeta de hoje é como esse xamã antigo que, através da repetição rítmica de palavras e imagens, convoca as forças benfazejas ou tenta exorcizar as forcas maléficas.

A poesia é, assim, antes de tudo, uma forma de medição. Um presságio do sul, como diz o meu amigo José Manuel Mendes. Uma encantada, encantatória e desesperada tentativa de captar a essência do mundo e de, através da palavra, "mudar a vida", como queria Rimbaud. Uma forma de alquimia. Que procura o impossível. Ou seja: o verso que não há.

A poesia é também a língua. E para mim a língua começa em Camões, que tinha uma flauta mágica. 

A música secreta da língua. A arte e o ofício da língua e da linguagem.. Nem foi por acaso que Dante chamou a Arnaut Daniel "il migiior fabbro". O poeta, dizia Cioran, "é aquele que leva a sério a linguagem". E o que é levar a sério a linguagem? Eu creio que é estar atento aos sinais. Os sinais mágicos da palavra. Os sinais da essência do mundo que por vezes se revelam na palavra poética. Ou talvez o duende e aquela ferida de que falava Lorca. Porque o poeta traz em si uma ferida e o duende por vezes ouve "sonidos negros". É então que a poesia acontece.

Isto é o que sei de poesia. Talvez seja muito pouco. Mas não sei se é possível saber mais.


Manuel Alegre, in “Obra Poética”,
a págs 903/904 (2000)




(Texto escrito e lido durante uma sessão consagrada a "Trinta Anos de Poesia” na Faculdade de Letras da Universidade Católica de Viseu, Maio de 1996)

terça-feira, maio 03, 2016

As palavras

Pintura de Lee Bogle


Das palavras
de algumas palavras
temos de conhecer mais
que seu significado,
temos de lhes sentir o tacto
o gosto, ouvir a voz,
temos de as provar
beber, comer, saborear
mastigar suavemente
e depois com ternura,
as engolir para que permaneçam
guardadas em nós.

Amor! O que é amor
se não for vivido!

in “Jardim de Afectos”,
a págs 26

quinta-feira, março 31, 2016

Ando pelas ruas desta incerta cidade. - Graça Pires

Durante mais de 10 anos anos, mantive o projecto original de dar preferência à divulgação de poemas partilhados na blogosfera.

É tempo, pois, de dar início a um novo ciclo.

Referi no passado mês de Dezembro que iria divulgar poemas editados em livros.

Inicia-se este ciclo com Graça Pires e um poema do seu último livro, “Uma claridade que cega”.

Gracinha Courela, "Estação Martim Moniz"

Ando pelas ruas desta incerta cidade.
Deixo que o meu olhar
se ajuste ao olhar dos outros.
Entre ruas e rostos há fragmentos de solidão
que denunciam a trágica expressão da vida.
Todos conhecem a oralidade da mudez,
a vigília da revolta, a senha do desdém,
a estranheza de golpes imolando os sonhos.
Eu, com uma fala colada na língua,
somente me consinto
a áspera caligrafia do silêncio.

(a págs. 41)