sábado, março 05, 2011

como desenhar um rio inscrito na pele?

Depois de três meses de ausência o Poesia Portuguesa volta a “abrir” portas.

Não é fácil, nos tempos que correm, cumprir a missão a que nos destinamos e que foi dar a conhecer a poesia da blogosfera, mas a desistência não está, de forma alguma, nos planos de quem se propôs levar a cabo tal missão.

Hoje trago-vos a poesia de alguém que apesar de já voar fora da blogosfera a ela permanece fiel e é carne e sangue de um Poeta que muito amo…




Pintura de Vladimir Volegov



escrever sobre um rosto é traçar numa tela a matéria do silêncio
como desenhar um rio inscrito na pele?
há palavras na boca que dizem a palavra, o início, há palavras que dizem pão,
há palavras no rosto há palavras há um rosto de palavras
na minha mão.

há uma fricção entre o rosto do mundo e o mundo do rosto
há a Voz de um rosto que resiste e revela por entre as mãos

há num rosto um olhar e um espelho,
um animal insubmisso, há uma substância mental
num rosto encontro um mapa de alianças, um fluxo de água
num rosto confluem poema e tempo
uma melodia de palavras em gestação

Poema de Gisela Ramos Rosa




Nota: este Post foi preparado em data anterior ao dia de hoje mas por motivos alheios à minha vontade só agora foi possível publicá-lo. As minhas desculpas pelo facto (26.04.2011)

terça-feira, dezembro 28, 2010

De uma memória tão antiga

Mais um ano a terminar.

Outro a aproximar-se devagarinho e, como nos anos anteriores, desejamos sempre que algo de novo nos traga.

Este blogue cumpriu, muito discretamente, no passado mês de Setembro, cinco anos de existência enriquecidos com palavras dos Autores que aqui foram partilhados ao longo deste tempo.

Cinco anos se cumpriram, é verdade!

A autora deste blogue sente-se feliz por ter partilhado, com emoção, a sensibilidade que foi descobrindo no mundo da blogosfera.

Muitos dos blogues provavelmente já não existem mas, aqui ficou, para a posteridade, o seu registo.

Outros caminhos de divulgação foram surgindo, é verdade, mas o Poesia Portuguesa continua a senda a que se propôs aqui...

Neste final de ano e através do blogue da Graça Pires Poeta Portuguesa de grande mérito e para quem vai a minha grande admiração, partilho o poema que lá descobri e que muito me sensibilizou.



Pintura de Gaudiol


dizer Dezembro como se o mar tocasse a voz
ou dizer uma rosa rubra atravessada
por lábios de luz.
dizer o oriente de uma estrela
e vestir a pele de um poema.
mas a palavra é uma criança tolhida de frio
nos cabelos nevrálgicos que a árvore segura.
e assim amanhecemos, tardios e ébrios
no carrossel que orquestra a cidade
com tambores de solidão.

dizer corpo e ser ponte sábia para o outro lado
e a vida ser tão simples como a mão
que toca a pele da sílaba
de uma memória tão antiga
como as solas de uma infância gasta.
dizer amor, esse fósforo que incendeia
e ser fogueira na nervura da palavra.

despir o olhar desta erosão de distância.
agasalhar os pés e resguardar
o dorso lírico do sangue
como se a um poema de Natal bastasse
o verde inflamado de um arbusto:
o labor inteiro do meu coração de terra.

Poema de
Luísa Henriques


Com o desejo de um...

quinta-feira, dezembro 23, 2010

Natal.



Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm?
Dos que não são cristãos?
Ou de quem traz às costas
As cinzas de milhões?
Natal de paz agora
Nesta terra de sangue?
Natal de liberdade
Num mundo de oprimidos?
Natal de uma justiça
Roubada sempre a todos?
Natal de ser-se igual
Em ser-se concebido,
Em de um ventre nascer-se,
Em por de amor sofrer-se,
Em de morte morrer-se,
E de ser-se esquecido?
Natal de caridade,
Quando a fome ainda mata?
Natal de qual esperança
Num mundo todo bombas?
Natal de honesta fé,
Com gente que é traição,
Vil ódio, mesquinhez,
E até Natal de amor?
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm?
Ou dos que olhando ao longe
Sonham de humana vida
Um mundo que não há?
Ou dos que se torturam
E torturados são
Na crença de que os homens
Devem estender-se a mão?

Poema “Natal de 1971”

 de Jorge de Sena in, De palavra em punho





FELIZ NATAL

quinta-feira, dezembro 02, 2010

Petição Inicial


Pintura de Caspar David Fredrich


Dá-me um cavalo uma alma uma nave
Algo que voe ou galope ou navegue
E seja azul ou de outra cor mas leve
No seu vagar qualquer coisa que lave

Dá-me uma curva um espelho uma pausa
Algo que brilhe e demore e seduza
E se transforme ao ar em luz difusa
Ou nada ou coisa que não tenha causa

Dá-me um comboio um apito um berlinde
Algo que parta ou que role ou decida
E ao passar perto da hora perdida
Nos traga a rima precisa de brinde

Dá-me um baloiço um esquadro uma vez
Algo que meça que oscile que seja
Uma surpresa o gesto que se beija
A última loucura que se fez

Dá-me um segredo uma cor uma uva
Algo que importe ou se cheire ou escorregue
(Mas não tropece nem ceda nem negue)
Por entre dedos ou gotas de chuva

Dá-me uma febre um papel uma esquina
Algo que rasgue ou se dobre ou estremeça
E que se esconda e mais tarde apareça
Sombra de vulto subindo a colina
Dá-me um arco que seja íris
Dá-me um sonho que seja doce
Dá-me um porto que tenha barcos
Dá-me um barco que nunca fosse

Dá-me um remo
Dá-me um prado
Dá-me um reino
Dá-me um verso

Dá-me um cesto
Dá-me um cento
Dá-me só
Um universo


Poema de
Mário Domingos(Alien8)

terça-feira, novembro 23, 2010

Poetisas


Pintura de Mela Villalta



Como pode alguém chamar
A este país, de Florbelas e Adílias?
Sem sequer saber sentir
Que nas nossas veias corre
Aroma de jasmins e buganvílias.
Sou passageira em viagem
Sempre em constante busca
Uma espécie de voragem
Uma estranha inquietação
Pouco me interessa quem chame
Se me sinto Gaspara Stampa
Irmanada na nudez e solidão.
Posso ser quem eu quiser
Fedra, Mariana ou só mulher
Auto-determinada para o Ser
Nesta errância da fatalidade.
Tenho assim por desígnio
Dolorosa e imensa tarefa,
Aperfeiçoar a arte de
Morrer Soror Saudade.
Não sem antes, ousar sonhar
Que sou Safo, que me corre
No corpo um frémito,
O coração bate apressado
Desfaleço e caio
E continuo a viagem
Sem ao fim ter já chegado.
Ah Soror Saudade,
Soror das Mágoas
Neste país a quem chamam
Das Adílias e Florbelas
Soubessem amá-las
E seria sim um jardim
À beira mar plantado.
Cheio das flores mais belas!

Poema de
Arroba

quarta-feira, outubro 27, 2010

Os Poetas


Imagem Photobucket

"A poesia, tal como a entendo, é inútil.
Para que terei então chegado aqui"
Nuno Júdice

a poesia não é inútil!
inúteis são todos os poetas
porque ninguém conseguiu ainda entende-los.

inútil sou eu quando escrevo um poema
simples e cristalino
latejando de verdade
sofrendo nesta cidade tranquila.

inútil sou eu que clamo
a magia do poema feito
numa tarde inexplicavelmente quente de setembro.

inúteis são os sonhos decepados
as palavras gastas
os gestos inexpressivos.

inúteis são todos os poetas
porque ninguém quer
entende-los.

Nota: Decidi publicar este poema que escrevi na década de 80 baseado numa frase de Nuno Júdice e após ler "da inutilidade dos meus dias"

quarta-feira, outubro 06, 2010

Tomai e comei...


Óleo sobre tábua de Pieter Claesz



Turvam-se os caminhos. Mas do sangue
Apenas o que farejo no barroco empolgante de Coppola
Nos mistérios nocturnos da Transilvânia
Nas oníricas danças das Parcas
No mistério decadente dos vampiros
E no absoluto amor do conde de Drácula...

Fora esse
Apenas o sangue da fêmea com cio
Ou arrancado ao peito para alimento dos famintos
Ou o sangue selo secreto
Das cumplicidades da vida.

E o sangue abortado de uma flor vermelha
Ou o virginal rubor das manhãs sem nome
Que me entram pela janela...

Ou a ceifeira morta. Ou a papoila decepada...
Ou o vermelho da romã nos lábios febris do beijo
Primevo.

Fora esse
Apenas o sangue quente do vinho e do mel
Em que ondas me expludo e teimo
Longe de caminhos palmilhados...

Este o meu corpo: tomai e comei!...


de
Heretico in Relógio de Pêndulo

sexta-feira, outubro 01, 2010

Concurso Literário

Imagem de Alfarroba

Informamos todos os interessados que está a decorrer o primeiro Concurso Literário – CONTO por CONTO organizado pela Alfarroba Edições, nas seguintes condições:
- categoria: CONTO
- limite 24 páginas, redigidas em tamanho A4, Arial corpo 12, espaço 1,5
- trabalhos apenas em língua portuguesa
- inscrições até 15 Dez 2010
- cinco primeiros classificados verão o seu conto publicado em livro pela Alfarroba

"Há a história do gato, do tio, da avó. A história da vizinha, da escola, do autocarro.
Todos os dias há histórias. As que nos acontecem e aconteceram. As que contamos aos nossos amigos e as que fazem apenas sentido lembrar.
E depois há as outras. As que deviam ou podiam ter acontecido. Mas apenas fazem eco nas nossas cabeças, brincando connosco.
Todas estas pequenas histórias merecem ser contadas. Ponto por ponto, conto por conto."


Outras informações aqui e aqui


Atreva-se a este desafio!

terça-feira, setembro 21, 2010

Vida


Pintura de Bernardus Johannes Blommers


"Capitão no seu posto"

Fez-se ao mar o marinheiro...
Ondinha vai, ondinha vem
O barco avança, vai mais além.

Lançou as redes o marinheiro,
Veio cardume bom e inteiro,
Peixe sadio e variado,
Mas, marinheiro, fardo pesado!
Ondinha vai, ondinha vem,
O barco avança, vai mais além.

Há vagas altas,
Há sobressaltos,
O barco balança,
Mas logo serena
Com a bonança,
Ondinha vai, ondinha vem,
O barco avança, vai mais além.

Não se desvia da sua rota.
Há muito mar para navegar,
Há muito peixe para colher,
Há horizontes por desvendar,
Há sol ao longe por descobrir,
Há onda e onda por florir...
Ondinha vai, ondinha vem
O barco avança, vai mais além.


Poema de Ibel (Maria Isabel)

in Frutos de Mim e Mar

domingo, agosto 15, 2010

Ilha


Imagem de Fabio Pallozzo



Há, no horizonte, uma ilha.
Na ilha, a voz distante de um clamor.
É de verde que se veste o coração. Expectante.

(Fechas os olhos e
encerras, no seu eixo,
o segredo de que ainda só
suspeitas.
Não sabes. Mas esperas.
E a luz, dentro deles,
revela o sonho que te conduz.)

No horizonte, uma ilha.
Nos teus olhos, o horizonte.


Poema de Susana Duarte in Terra de Encanto

quinta-feira, agosto 12, 2010

103 anos depois...

... continua VIVO entre aqueles que amam a sua Poesia.


Miguel Torga

"Segredo" na voz de Luis Gaspar


SEGREDO

Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.

Mas escusam de me atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar...

in "Diário VIII"


Nota: Para ouvir o poema desligar a música de fundo do Blogue, por favor.

sexta-feira, julho 23, 2010

... poema de amar


Fotografia de Alexander Flemming


gostava de fazer-te um poema de amar,
fazer um poema para te amar,
de fazer um poema ao amar-te.

porquê amar, amar-te a ti?
porque me amo mais por amar-te,
porque nos amo aos dois?
sim e não,
sim porque amar, é amar-te a ti.
não porque amar-te, não é amar.

porquê perguntar, perguntar-te a ti
e não a mim mesma?
sim e não, pergunto-te?
ontem sim, hoje não,
amanhã talvez?
talvez não ontem, como hoje
e talvez não amanhã.

mas amo amar-te,
e amava puder amar-te mais.

gostei de fazer-te um poema de amar,
fazer um poema para te amar,
um poema ao amar-te.
e ao amar-te, fiz um poema de amar.
e ao te amar, faço um poema para amar-te mais.

Poema de
Luísa Azevedo

quarta-feira, junho 16, 2010

ausência


Imagem de Marta Dahig

À sombra da tua ausência
Repouso os meus olhos
Fechados, inertes
Vagueiam por mim
Procurando destroços
Em que despertes,
De repente…

Sei-te ausente,
- Mesmo…
Sei que não posso
esperar-te
- De todo…
Mas este vício
De aguardar-te
Prende-me como lama,
Lodo
Atrofiante, espesso…

E como nódoa
Entranhada
Permaneces como gesso
Colado à parede
Do meu afecto
Qual vinagre
Na minha sede
Qual erro
De tudo
Quanto em mim
Está certo…


Poema de
Virgínia do Carmo

sexta-feira, maio 21, 2010

ASAS


Imagem de Fabio Pallozzo


Quando chegava o Verão
Sentavas-te
À tardinha
Debaixo da figueira
Onde a brisa
Suave
Anunciava
O rumor das cotovias
Então pegavas
Delicada
Na minha mão
E contavas
Baixinho
Era uma vez um potrinho
Que adormecia
Feliz
A ouvir
As histórias do vento...
Sentia-te perto
E o tempo
Adormecido
No cantar do ribeiro
Parava
Enlevado
Para nos ver
Assim eram os dias
No tranquilo Paraíso
Em que desenhavas
Minuciosa
O crescer das minhas asas
E eu sentia
Maravilhado
O vigor do teu voar.

Poema de
AC in Interioridades

segunda-feira, maio 17, 2010

De novo... "portas" abertas!

Finalmente o acesso a este blogue foi restabelecido!

Por algum motivo incompreensível a password de acesso foi bloqueada e os esforços que entretanto foram efectuados, inclusive por alguns Amigos da “casa”, tiveram os seus frutos: estamos de novo no “ar”.

Numa mensagem deixada no texto de 20 de Novembro, p.p.
Bruno Pereira da Revista AlterWords dizia-nos o seguinte:



Revista AlterWords


“Numa altura em que muitos dizem que a Poesia vai perdendo espaço na literatura (o que espero bem que não aconteça porque a Poesia é algo muito português) apresentamos hoje um blog dedicado a publicitar a poesia portuguesa no espaço virtual.

Com poemas de boa qualidade é sem dúvida um bom blog para apreciar o que se vai fazendo em Portugal neste estilo.

O blog já leva 4 anos de existência e apesar dos objetivos mudarem mantém a tentativa de divulgação

"Há um mundo poetico por descobrir: autores publicados, ou por edição própria ou através de editoras, mas que por circunstâncias diversas, não são conhecidos do grande público; autores, igualmente, de grandes capacidades literárias, mas que nunca tiveram sobre si os flashes do sucesso" in www.portuguesapoesia.blogspot.com

esta é a publicidade que vai aparecer na Revista AlterWords Nr.13 porque blogs como este merecem. “

E assim aconteceu...

Na página 26 do nº. 13 da Revista AlterWords o nosso blogue com “capa” do Poema Colectivo postado em 29 de Janeiro último, Bruno Pereira dá a conhecer o nosso blogue Poesia Portuguesa com aquelas palavras de apreço.

Congratulando-me em nome do Poesia Portuguesa e de todos os que têm permanecido fiéis a este projecto, endereço o meu agradecimento à
Revista AlterWords na pessoa do Bruno Pereira. Obrigada.

Um grande abraço a todos.

Otília Martel

quinta-feira, fevereiro 18, 2010

360 graus de poesia

Pintura de Salvador Dali

Não posso escrever poemas apenas com poesia. Poesia são sonos que vou dormir com o tempo que me resta até ser hoje. É poesia chegar ao fim do copo às vezes sem beber uma única palavra. Acrescentar mais uma hora à eternidade e entornar à tona da tua boca todos os desejos que sorvo quando não escrevo por ser de silêncio o tempo que te basta para ser feliz. São poesia corpos de água que peço ao céu para te embriagar com doses de esquecimento. São poesia sons que me ensurdecem pela garganta abaixo. Arcos de quem flecha uma janela no meio dum coração em pé de aços. Aguarelas de chuva que se fazem eco caindo em catadupa de duas gotas.

São poesia dardos em direcção ao oeste este incêndio à flor da pele este barco estes remos contra a maré estas asas este voo enevoado estes dedos de beliscar as estrelas depois das palavras. São poesia céus para voar transformados em obstáculo. Pontos cardeais que não chegam a nenhum poente. Caminhos de andar desnorteado entre o norte e o luar. Enxadas que descascam a paisagem. Sinais de fumo que nos atravessam em procissão poesia as fracturas de luz e traços de alegria e cores de azul. São de prosa as rosas do vento que nos revela até onde é infinito o sono que vamos levando aos poucos.

São de prosa.

A cama electrodoméstico de fazer metáforas quando a noite se enche de alma. A bússola que não me cura deste jeito imundo de apedrejar as palavras. O almoço que fica mais pequeno quando retiro metade para servir de jantar. O lavatório sujo de manhãs por esfregar. O pão duro matinal fora do alcance dos dentes. Os cigarros que perfumo como incenso. Doesse tudo isso como uma imperceptível bofetada de amor inscrita na face. Sou eu beijo ou inspiração boca a boca ao último verso. És tu a enlouquecer pouco a pouco horas acrescentadas no colo da eternidade. Somos nós corpo a corpo salpicados com um tiro de imaginação em papel de embrulhar sonhos.

Não posso escrever poemas apenas com poesia. Um dia não se cura de uma ferida para a outra e apenas saudade não basta para te esconder da minha ausência.

in ParadoXos

sexta-feira, janeiro 29, 2010

Poema Colectivo.

Pintura de Üzeyir Lokman Çayci


um beijo
no centro
do coração
e que a voz
se erga
pulando a cerca da noite
em balidos de veludo
despertando sobre a areia
no aroma da aurora

um beijo
um beijo ao lado do coração
para depois o agarrar
na noite perdida e achada
sem nunca a voz derrubar

da boca nasce então um grito
nas mãos
cravos vermelhos
no coração
amor novo
nascido na madrugada
que aqui não chegou

nesta minha terra não se podia cantar
até que um cravo de liberdade
nos fez levantar e gritar

as vozes ergueram-se em uníssono
e um canto fizeram despertar

eis agora
no centro do cravo coração
alma de novo a pulsar
não pode perder a noção
não pode deixar-se calar
desperta voz do amor
desprende deste cravo
as notas suaves
mas graves
de arpejos quase sem dor

escuta
o olhar preso na miséria do povo
ouve o soldado poeta
de mãos a gemer
ejaculando ecos de raiva
com que bordava as estrofes
pressentindo em júbilo

que um abril havia de acontecer
e no perfil dum tempo a correr
atiram as palavras-mal-paridas
como balas abatendo os cravos que nasciam
no coração do poeta

olha os passos fardados
olha o ganir do medo
vampiros vorazes
procurando sugar o puro sangue
da madrugada
sem o tempo da aurora

que fazer

que fazer
deste tempo
daquele tempo

pára
pára tempo
tempo não pares
olha o futuro

futuro

onde

para onde
para ontem

para amanhã
porque hoje
não és porto de abrigo

cada um escolheu seu jardim florido
nos verdes sonhos da juventude que escoa
onde nossos filhos abraçarão
gaia
que lhes deixaremos como
terra queimada e desilusão

sabes

não me perguntes
como vivi o futuro
porque eu quero
sepultar o tempo
o passado é amanhã
e por ti vou esperar
nos silêncios gastos
enrolados nas areias
ansiando um tempo novo

serenos
aguardamos
o que somos
o que fomos
fruto da seiva
escorrida da terra ferida
de onde nasceram
cravos vermelhos
que ousaram
perpetuar o nome de
liberdade

direi então
mais do que nunca

um beijo
no centro
do coração e que a voz
se erga
ao nascer
da aurora


Imagem de Isabel Monteverde in Artista Maldito


Ideia original do Blogue Poemar-te


Participaram neste poema, com pequenos retoques do José Marinho, autor da ideia e igualmente participante:

Isabel Monteverde,
Ana Paula Sena Belo,
Fátima,
BC-SLetras,
Vasco,
Desnuda,
Marta Vasil,

Betty Martins,
Menina Marota,

Poetaeusou,
Rosa Brava,
José Marinho.

(A versão em bruto (original) poderá ser vista no próprio Blogue)

quarta-feira, janeiro 13, 2010

Janeiro

Pintura de Carlo Carrà


Não chove nem faz sol na minha rua.
É a hora triste. Aquela hora morta
em que uma sombra nos espreita a porta
e pelas frinchas gastas se insinua.

Monótona e distante quer a lua
reflorir ao luar, na minha horta,
aquela cerejeira velha e torta
que há muitos anos amanhece nua.

Um cão sujo, faminto, vagabundo,
com ar de quem já sabe o que é o mundo,
para ali se ficou lambendo uns pratos…

Passa gente embrulhada em roupas velhas…
E sobre as casas, através das telhas,
A sinfonia bárbara dos gatos.


Fernanda de Castro in, Cidade em Flor
pág. 27/28 (1924)

sábado, dezembro 19, 2009

Natal...

Imagem cedida por Pessoa Amiga

Velho Menino-Deus que me vens ver
Quando o ano passou e as dores passaram:
Sim, pedi-te o brinquedo, e queria-o ter,
Mas quando as minhas dores o desejaram...

Agora, outras quimeras me tentaram
Em reinos onde tu não tens poder...
Outras mãos mentirosas me acenaram
A chamar, a mostrar e a prometer...

Vem, apesar de tudo, se queres vir.
Vem com neve nos ombros, a sorrir
A quem nunca doiraste a solidão...

Mas o brinquedo... quebra-o no caminho.
O que eu chorei por ele! Era de arminho
E batia-lhe dentro um coração...

NATAL, de Miguel Torga



terça-feira, dezembro 15, 2009

Criança eterna…

Imagem autor desconhecido (Google)

Vi nos voos dos pássaros
O entardecer escapar-se por entre
Os traços verdes do arvoredo.
Sob os olhos do anoitecer uma alma
Amparada no florir de um beijo
Em instantes de sol e doçura;
Um coração a sangrar por nada ter
Para dar e tudo perder e um homem
Que toda a sua riqueza consigo transporta.

E vi sombras de fogo num peito,
Uma alegria descontente em horas
Que são minutos quando dois corpos
Em seu leito se enamoram; e vi bolsos
De mar e de luz no desassossego
E em tudo vi a criança eterna…
Vi-me a mim.

De Alves Bento Belisário in, Inquietudes, pág. 38 (2005)