quinta-feira, abril 26, 2018

Em uníssono - Graça Pires

Moises Saman


Indagamos, em uníssono, o avesso dos dias
retalhados por mãos adversas,
para não nos equivocarmos
com o rosto deste mundo 
em constante calafrio, em arriscada deriva.
Porque estes são tempos exasperantes
de perder as pátrias e as casas
e os pais e os irmãos e os amigos
e os nomes e a memória.
E nas imensas planícies enegrecidas
é desabrido o som dos que bradam
quando as crianças ensurdecem no silêncio.
A meia-haste, arvoramos a rugosidade
das cinzas e o rasgão do medo,
para não permanecermos alheios
à saturação dos que sangram,
dos que tombam, dos que resistem.

In: CONTINUUM: Antologia poética. Pinturas de Luís Liberato, fotografias de Soledade Centeno. Braga: Poética, 2018, p. 123

quarta-feira, abril 04, 2018

JURA - Antero de Quental

Judith Leyster

Pelas rugas da fronte que medita...
Pelo olhar que interroga — e não vê nada...
Pela miséria e pela mão gelada
Que apaga a estrela que nossa alma fita...

Pelo estertor da chama que crepita
No último arranco duma luz minguada...
Pelo grito feroz da abandonada
Que um momento de amante fez maldita...

Por quanto há de fatal, por quanto há misto
De sombra e de pavor sob uma lousa...
Oh pomba meiga, pomba da esperança!

Eu te juro, menina, tenho visto
Coisas terríveis — mas jamais vi coisa
Mais feroz do que um riso de criança!

Antero de Quental


quarta-feira, março 21, 2018

Não sei quantas almas tenho.

Neste Dia Mundial da Poesia, volto a abrir as portas deste Blogue.
Uma ausência de quase dois anos.
Causas?
Tantas!
Desde emocionais a pessoais em todas as minhas almas.
Quem me conhece pessoalmente (e já é tanta gente!) sabe do que falo.
Mas voltei. E, creio, para ficar.
Não sou de promessas fáceis como alguns políticos. 
Sou humana e, como tal, posso falhar.
Para já regresso com Fernando Pessoa e, quem sabe, todas as suas almas.
Agradeço, desde já, ao Blogue Do Tempo da Outra Senhora, do Hernâni Matos, cuja publicação me inspirou a voltar aqui.
Fernando Pessoa, Bernardo Soares, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.
Caricatura de Rui Pimentel.



Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.

Fernando Pessoa in, Novas Poesias Inéditas, 
a págs. 680/681
Obras Completas, Vol. II

terça-feira, maio 24, 2016

O QUE SEI DE POESIA

Um texto provavelmente longo, para quem aprecie leituras breves... 
Mas vale a pena ler todo o seu conteúdo.


Desenho de Jason Morrow


O QUE SEI DE POESIA

Não sei falar de literatura. Não sei falar de poesia. Sobretudo não sei se a poesia tem alguma coisa a ver com a literatura. Talvez esteja antes ou depois da literatura. Sei que a poesia não se explica, a poesia implica, como costuma dizer a minha amiga Sophia de Mello Breyner. Sei que a energia, como diz o meu amigo Herberto Hélder, é a essência do mundo e que “os rit­mos em que se exprime constituem a forma do mundo". Sei, como o poeta russo Mandelstam, que "escrever é um acontecimento cósmico". E que cada palavra é um pedaço de universo. Ou como dizia Klebnikov: "Na natureza da palavra viva, esconde-se a matéria luminosa do universo." Talvez tudo isto seja a poesia. Ou talvez ela não seja mais do que o primeiro verso, aquele que nos é dado, como sempre dizia Miguel Torga, porque os outros têm de ser conquistados. Talvez tudo esteja nesse primeiro verso, que é o instante da revelação e da relação mágica com o mundo através da palavra poética. Talvez o poeta, afinal, não seja muito diferente daquele sujeito que vemos nas tribos primitivas, de plumas na cabeça, repetindo palavras mágicas enquanto dança e pula ao ritmo de um tambor. O poeta é esse feiticeiro. Dança com palavras ao som de um ritmo que só ele entende. Ou é talvez o adivinho. 

Como já não pode ler nas vísceras das vítimas, procura decifrar os sinais dos tempos através de múltiplos sentidos ou dos semi-sentidos da palavra. De qualquer modo, como nas sociedades primitivas, que tinham uma concepção mágica do mundo, o poeta de hoje é como esse xamã antigo que, através da repetição rítmica de palavras e imagens, convoca as forças benfazejas ou tenta exorcizar as forcas maléficas.

A poesia é, assim, antes de tudo, uma forma de medição. Um presságio do sul, como diz o meu amigo José Manuel Mendes. Uma encantada, encantatória e desesperada tentativa de captar a essência do mundo e de, através da palavra, "mudar a vida", como queria Rimbaud. Uma forma de alquimia. Que procura o impossível. Ou seja: o verso que não há.

A poesia é também a língua. E para mim a língua começa em Camões, que tinha uma flauta mágica. 

A música secreta da língua. A arte e o ofício da língua e da linguagem.. Nem foi por acaso que Dante chamou a Arnaut Daniel "il migiior fabbro". O poeta, dizia Cioran, "é aquele que leva a sério a linguagem". E o que é levar a sério a linguagem? Eu creio que é estar atento aos sinais. Os sinais mágicos da palavra. Os sinais da essência do mundo que por vezes se revelam na palavra poética. Ou talvez o duende e aquela ferida de que falava Lorca. Porque o poeta traz em si uma ferida e o duende por vezes ouve "sonidos negros". É então que a poesia acontece.

Isto é o que sei de poesia. Talvez seja muito pouco. Mas não sei se é possível saber mais.


Manuel Alegre, in “Obra Poética”,
a págs 903/904 (2000)




(Texto escrito e lido durante uma sessão consagrada a "Trinta Anos de Poesia” na Faculdade de Letras da Universidade Católica de Viseu, Maio de 1996)

terça-feira, maio 03, 2016

As palavras

Pintura de Lee Bogle


Das palavras
de algumas palavras
temos de conhecer mais
que seu significado,
temos de lhes sentir o tacto
o gosto, ouvir a voz,
temos de as provar
beber, comer, saborear
mastigar suavemente
e depois com ternura,
as engolir para que permaneçam
guardadas em nós.

Amor! O que é amor
se não for vivido!

in “Jardim de Afectos”,
a págs 26

quinta-feira, março 31, 2016

Ando pelas ruas desta incerta cidade. - Graça Pires

Durante mais de 10 anos anos, mantive o projecto original de dar preferência à divulgação de poemas partilhados na blogosfera.

É tempo, pois, de dar início a um novo ciclo.

Referi no passado mês de Dezembro que iria divulgar poemas editados em livros.

Inicia-se este ciclo com Graça Pires e um poema do seu último livro, “Uma claridade que cega”.

Gracinha Courela, "Estação Martim Moniz"

Ando pelas ruas desta incerta cidade.
Deixo que o meu olhar
se ajuste ao olhar dos outros.
Entre ruas e rostos há fragmentos de solidão
que denunciam a trágica expressão da vida.
Todos conhecem a oralidade da mudez,
a vigília da revolta, a senha do desdém,
a estranheza de golpes imolando os sonhos.
Eu, com uma fala colada na língua,
somente me consinto
a áspera caligrafia do silêncio.

(a págs. 41)

segunda-feira, dezembro 14, 2015

Domingos da Mota

Poema de Natal
com que a vida resiste, e anda, e dura.
Pedro Tamen
        Não digo do Natal - mas da natura
de quem faz do poder um pesadelo
que aprofunda as sementes da amargura
através do garrote e do escalpelo;

não digo do Natal - mas da tortura
que macera as feridas com desvelo,
impassível à dor que já satura
os ombros causticados pelo gelo.

Dissesse do Natal - seria bom
que pudesse cantar, subir o tom
das loas e dos hinos e dos ritos,

se em vez duma esmola, tão-somente
renascesse o respeito pela gente
que povoa o Natal dos aflitos.


Kasia Derwinska

segunda-feira, dezembro 07, 2015

POESIA PORTUGUESA

O Poesia Portuguesa perfez 10 anos no passado mês de Setembro. Uma vida dedicada à divulgação de poetas maioritáriamente da blogosfera.

Quase no final de 2015 é oportuno agradecer a todos que, com a sua presença e palavras, continuam a dar-me alento para continuar.

É tempo, contudo, de pensar noutros projectos.  

Por isso a partir de 2016 o Poesia Portuguesa passará, também, a divulgar poetas que tenham poemas editados em livros. 

E assim se inicia um novo ciclo para este blogue.

Grata a todos que me têm acompanhado nesta caminhada poética.


domingo, novembro 22, 2015

Confissão d’um tempo que se cumpre


Confesso que me espantam
as distancias que vou guardando nas mãos,
as sombrias madrugadas dos homens.
Por vezes encontro o vento que desfaz as tempestades
e acalma os corpos… tão belos.

Vejo os horizontes, daqui, em grande plano
e derramo o voo das aves na palma das minhas mãos;
Ilusão mantida de liberdade
que morre na rebentação dos mares
onde navega o coração dos que em mim vivem.

Da vasta paisagem gretada pelos sóis
salvo o azul de um olhar, o verde de um respirar
e a resina de um corpo esquecido…
Este meu corpo onde o sangue de que se alimenta a carne
vai completando o cíclico regresso à terra.


Poema e imagem de António Patrício

sábado, julho 25, 2015

E foi assim que me fiz árvore!



A princípio era só céu!
E foi por isso que não deu
E zanguei-me com o céu!

Depois passei a ser só terra!
E foi por isso que não deu
E zanguei-me com a terra!

Finalmente, a pouco e pouco, 
céu e terra deram-se as mãos fraternas.

E foi assim que me fiz árvore
a crescer dentro de mim…

segunda-feira, junho 22, 2015

DO TEMPO BRUTO




Pouco se fala deste tempo bruto, 
falho de rituais, celebrações. 
Temível a escassez de dias novos, 
com gente a contemplar as áureas proporções,
de joelhos no saibro, 
atenta ao eco das esferas, 
comovida, silenciosa, longe, já muito longe
da multidão avara e ululante.

É este o tempo da corrida,
do mais lesto,
da luta, do mais forte,
do corpo, o mais violado.

Quem sabe, cala, que veloz é a luz,
e nada resta de quem com ela competir.
Forte é a gravidade que nos cola, 
sem apelo, a todos os fantasmas.
Do corpo, ah, do corpo só sabemos
que nasce e vai morrendo,
indiferente ao abuso e ao incenso.

É preciso falarmos do que importa.
Da concha do caramujo, da espiral dos dias.


Poema e imagem Licínia Quitério 

quarta-feira, junho 03, 2015

"Voando por aí"

Wassily Kandinsky


Salta o muro, salta o cerco,
corre colinas com alento.
Vai de vento, vai de vento,
vai de tempo em tempo.
Tem depressa de chegar,
entregar-se ao movimento.

sexta-feira, maio 15, 2015

Num Campo de Papoilas



Nem sempre

Nem sempre a noite é clara
deixando perceptível
o encarnado vivo das papoilas.
nem sempre
a voz dos pássaros entoa cânticos
onde o silêncio ainda se consome
e a luz lunar prateia os campos,
e das estrelas saem purpurinas azuis ,
e a espuma das ondas salga a areia fina
onde deixamos marcados os nossos pés.
e os nossos corpos.

Nem sempre

Nem sempre da janela do meu quarto,
consigo ver a velha árvore
a suplicar-me que se faça mutismo,
a implorar-me o amainar dos ventos
para que, entre as minhas margens
se contenham as águas.
Sim as águas.
onde vagueiam hastes perdidas,
onde derretem fogos
ainda por extinguir, no rescaldo dos anos.

Mas hoje,

somente hoje,
e, desculpem-me a ousadia:

Faça-se silêncio!

O ruído é-me nefasto ao gesto,
e os dedos contorcem-se
enquanto o pensamento vagueia
entre as sete colinas desse campo
coberto de vermelho vivo,
tal e qual um manto de papoilas,
a afirmarem-se vida,
e a vidraça que nos separa.

Porque hoje,

somente hoje,
da janela do meu quarto,
quero ignorar a ponte secular
que desaba em ruínas,
quero enfeitar a velha árvore
com estilhaços luminosos
de bolas de sabão,
quero agigantar-me e,
extrapolar-me para além do corpo,
ou da pele,
ignorar as margens,
e quem sabe,
tornar-me ilha,
no cimo de uma montanha.

Somente hoje,
deixem-me pintar de azul - as papoilas -
e apagar tudo o mais, que for dissoluto.

Quer ao gesto. Quer ao pensamento. 

Pintura de Alexander Dolgikh

terça-feira, abril 28, 2015

mediterrâneo


- sem saber, de todo, quanto vale a vida humana, 
qualquer que seja a cor, o credo ou a idade, 
sei melhor a lonjura da Utopia
e vivo na amargura da vergonha.


entre a terra e a terra
fica o mar
e fica a sorte

entre o mar e a terra
fica o norte
e fica a morte dos sem sorte
dos sem terra

entre o norte e a morte
fica a sorte
e à sorte fica a guerra
e os sem terra
no desterro
pelo erro
de viver que a morte encerra  

e há um mar imenso
e o consenso sem conteúdo
e há um grito incontido
um bramido
que não é do mar
mas é de tudo

de tudo o que não vemos
nem sabemos
mas acima de tudo
acontecer
o nem querermos saber
que a cor do mar
é por vezes tão vermelha
quanto valha
por se querer chegar ao norte
e assim morrer.


sexta-feira, janeiro 16, 2015

Uma mantilha solta...

Pintura de Ferreira Pinto


O vento. Um nome.
Uma mantilha solta. Sem outra cor...

Apenas a pele. A letra soletrada.
A flor estendida. A oferta.
E o carmim do beijo antes dos lábios...

Apenas o gesto. Não a pétala.
Nem a rosa profanada...

Apenas brisa em mão aberta.
E um raro perfume escondido. E o sonho da montanha.
Trepando. E o lago dos olhos. Alagando-se...

Apenas um rubor mal desperto.
Ainda...

E este alvoroço da tarde
Em azul aberto. Que de tão ténue
Resiste...


quinta-feira, janeiro 08, 2015

Falso Diligenciar



No obedecer de um falso diligenciar humano,
apenas por ter a mão no leme...
torna-se castrador aviltante do direito simples
do viver, de humanos injustamente condenados
à cegueira, à surdez e à mudez de um tentar ser digno.

No obedecer de um falso diligenciar humano,
ordena-se arrastar pelo esbulho fácil, de sorrisos cínicos
a validade de uma esperança vida,
a serenidade de uma liberdade coerente...até ao descanso justo.
- Nem Judas traiu assim...

  José Luís Outono 
 Poema e Imagem 

quinta-feira, janeiro 01, 2015

Estuário dos tempos



são inocentes os olhos que acordam
na fonte do princípio,
na origem das nascentes.

maculados os outros, que adormecem
na foz dos invernos.

no estuário dos tempos.



Foto: LNM – Janela – Silves


domingo, novembro 23, 2014

Dança das horas

Chris Koulis


o corpo persiste
entre um poço e o vento
mais um passo
o desvelo
no silêncio do tempo
a alma resiste
à ilusão ambulante
espantando cinzas
na ponta acesa das horas
seu derradeiro atrevimento

in, infinitudes

segunda-feira, outubro 27, 2014

amor egoísta

Wâgnér C Bärbosá

Desafio-te a ficar esta noite
Comigo e o que resta de mim em ti

Para que eu fique a saborear quem era

Os olhos com que me vias
A boca com que me tocavas
E possa ser novo e amar-me egoisticamente
E ser somente anterior primavera
Fazer-me crescer e enraizar-me em ti

Como serpente

Aventureira hera
Que morre mas desenhou tudo aquilo que fica
Eternamente


in, Conversas num carro vazio

quarta-feira, outubro 15, 2014

Figueira da Foz: Da casa que me separa da infância

Da casa que me separa da infância
avistava-se o lugar onde as águas
mais espessas do rio se juntam ao mar.
A foz. A ondulação crescente
desafiando as areias.
As marés tão altas que faziam brilhar
os peixes  e assinalavam, no farol,
o lugar onde as gaivotas
podiam começar a enlouquecer.
Era aí a casa que me separa da infância.

De Espaço livre com barcos, 2014
(pág. 11)


CONVITE