quarta-feira, outubro 27, 2010

Os Poetas


Imagem Photobucket

"A poesia, tal como a entendo, é inútil.
Para que terei então chegado aqui"
Nuno Júdice

a poesia não é inútil!
inúteis são todos os poetas
porque ninguém conseguiu ainda entende-los.

inútil sou eu quando escrevo um poema
simples e cristalino
latejando de verdade
sofrendo nesta cidade tranquila.

inútil sou eu que clamo
a magia do poema feito
numa tarde inexplicavelmente quente de setembro.

inúteis são os sonhos decepados
as palavras gastas
os gestos inexpressivos.

inúteis são todos os poetas
porque ninguém quer
entende-los.

Nota: Decidi publicar este poema que escrevi na década de 80 baseado numa frase de Nuno Júdice e após ler "da inutilidade dos meus dias"

quarta-feira, outubro 06, 2010

Tomai e comei...


Óleo sobre tábua de Pieter Claesz



Turvam-se os caminhos. Mas do sangue
Apenas o que farejo no barroco empolgante de Coppola
Nos mistérios nocturnos da Transilvânia
Nas oníricas danças das Parcas
No mistério decadente dos vampiros
E no absoluto amor do conde de Drácula...

Fora esse
Apenas o sangue da fêmea com cio
Ou arrancado ao peito para alimento dos famintos
Ou o sangue selo secreto
Das cumplicidades da vida.

E o sangue abortado de uma flor vermelha
Ou o virginal rubor das manhãs sem nome
Que me entram pela janela...

Ou a ceifeira morta. Ou a papoila decepada...
Ou o vermelho da romã nos lábios febris do beijo
Primevo.

Fora esse
Apenas o sangue quente do vinho e do mel
Em que ondas me expludo e teimo
Longe de caminhos palmilhados...

Este o meu corpo: tomai e comei!...


de
Heretico in Relógio de Pêndulo

sexta-feira, outubro 01, 2010

Concurso Literário

Imagem de Alfarroba

Informamos todos os interessados que está a decorrer o primeiro Concurso Literário – CONTO por CONTO organizado pela Alfarroba Edições, nas seguintes condições:
- categoria: CONTO
- limite 24 páginas, redigidas em tamanho A4, Arial corpo 12, espaço 1,5
- trabalhos apenas em língua portuguesa
- inscrições até 15 Dez 2010
- cinco primeiros classificados verão o seu conto publicado em livro pela Alfarroba

"Há a história do gato, do tio, da avó. A história da vizinha, da escola, do autocarro.
Todos os dias há histórias. As que nos acontecem e aconteceram. As que contamos aos nossos amigos e as que fazem apenas sentido lembrar.
E depois há as outras. As que deviam ou podiam ter acontecido. Mas apenas fazem eco nas nossas cabeças, brincando connosco.
Todas estas pequenas histórias merecem ser contadas. Ponto por ponto, conto por conto."


Outras informações aqui e aqui


Atreva-se a este desafio!

terça-feira, setembro 21, 2010

Vida


Pintura de Bernardus Johannes Blommers


"Capitão no seu posto"

Fez-se ao mar o marinheiro...
Ondinha vai, ondinha vem
O barco avança, vai mais além.

Lançou as redes o marinheiro,
Veio cardume bom e inteiro,
Peixe sadio e variado,
Mas, marinheiro, fardo pesado!
Ondinha vai, ondinha vem,
O barco avança, vai mais além.

Há vagas altas,
Há sobressaltos,
O barco balança,
Mas logo serena
Com a bonança,
Ondinha vai, ondinha vem,
O barco avança, vai mais além.

Não se desvia da sua rota.
Há muito mar para navegar,
Há muito peixe para colher,
Há horizontes por desvendar,
Há sol ao longe por descobrir,
Há onda e onda por florir...
Ondinha vai, ondinha vem
O barco avança, vai mais além.


Poema de Ibel (Maria Isabel)

in Frutos de Mim e Mar

domingo, agosto 15, 2010

Ilha


Imagem de Fabio Pallozzo



Há, no horizonte, uma ilha.
Na ilha, a voz distante de um clamor.
É de verde que se veste o coração. Expectante.

(Fechas os olhos e
encerras, no seu eixo,
o segredo de que ainda só
suspeitas.
Não sabes. Mas esperas.
E a luz, dentro deles,
revela o sonho que te conduz.)

No horizonte, uma ilha.
Nos teus olhos, o horizonte.


Poema de Susana Duarte in Terra de Encanto

quinta-feira, agosto 12, 2010

103 anos depois...

... continua VIVO entre aqueles que amam a sua Poesia.


Miguel Torga

"Segredo" na voz de Luis Gaspar


SEGREDO

Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.

Mas escusam de me atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar...

in "Diário VIII"


Nota: Para ouvir o poema desligar a música de fundo do Blogue, por favor.

sexta-feira, julho 23, 2010

... poema de amar


Fotografia de Alexander Flemming


gostava de fazer-te um poema de amar,
fazer um poema para te amar,
de fazer um poema ao amar-te.

porquê amar, amar-te a ti?
porque me amo mais por amar-te,
porque nos amo aos dois?
sim e não,
sim porque amar, é amar-te a ti.
não porque amar-te, não é amar.

porquê perguntar, perguntar-te a ti
e não a mim mesma?
sim e não, pergunto-te?
ontem sim, hoje não,
amanhã talvez?
talvez não ontem, como hoje
e talvez não amanhã.

mas amo amar-te,
e amava puder amar-te mais.

gostei de fazer-te um poema de amar,
fazer um poema para te amar,
um poema ao amar-te.
e ao amar-te, fiz um poema de amar.
e ao te amar, faço um poema para amar-te mais.

Poema de
Luísa Azevedo

quarta-feira, junho 16, 2010

ausência


Imagem de Marta Dahig

À sombra da tua ausência
Repouso os meus olhos
Fechados, inertes
Vagueiam por mim
Procurando destroços
Em que despertes,
De repente…

Sei-te ausente,
- Mesmo…
Sei que não posso
esperar-te
- De todo…
Mas este vício
De aguardar-te
Prende-me como lama,
Lodo
Atrofiante, espesso…

E como nódoa
Entranhada
Permaneces como gesso
Colado à parede
Do meu afecto
Qual vinagre
Na minha sede
Qual erro
De tudo
Quanto em mim
Está certo…


Poema de
Virgínia do Carmo

sexta-feira, maio 21, 2010

ASAS


Imagem de Fabio Pallozzo


Quando chegava o Verão
Sentavas-te
À tardinha
Debaixo da figueira
Onde a brisa
Suave
Anunciava
O rumor das cotovias
Então pegavas
Delicada
Na minha mão
E contavas
Baixinho
Era uma vez um potrinho
Que adormecia
Feliz
A ouvir
As histórias do vento...
Sentia-te perto
E o tempo
Adormecido
No cantar do ribeiro
Parava
Enlevado
Para nos ver
Assim eram os dias
No tranquilo Paraíso
Em que desenhavas
Minuciosa
O crescer das minhas asas
E eu sentia
Maravilhado
O vigor do teu voar.

Poema de
AC in Interioridades

segunda-feira, maio 17, 2010

De novo... "portas" abertas!

Finalmente o acesso a este blogue foi restabelecido!

Por algum motivo incompreensível a password de acesso foi bloqueada e os esforços que entretanto foram efectuados, inclusive por alguns Amigos da “casa”, tiveram os seus frutos: estamos de novo no “ar”.

Numa mensagem deixada no texto de 20 de Novembro, p.p.
Bruno Pereira da Revista AlterWords dizia-nos o seguinte:



Revista AlterWords


“Numa altura em que muitos dizem que a Poesia vai perdendo espaço na literatura (o que espero bem que não aconteça porque a Poesia é algo muito português) apresentamos hoje um blog dedicado a publicitar a poesia portuguesa no espaço virtual.

Com poemas de boa qualidade é sem dúvida um bom blog para apreciar o que se vai fazendo em Portugal neste estilo.

O blog já leva 4 anos de existência e apesar dos objetivos mudarem mantém a tentativa de divulgação

"Há um mundo poetico por descobrir: autores publicados, ou por edição própria ou através de editoras, mas que por circunstâncias diversas, não são conhecidos do grande público; autores, igualmente, de grandes capacidades literárias, mas que nunca tiveram sobre si os flashes do sucesso" in www.portuguesapoesia.blogspot.com

esta é a publicidade que vai aparecer na Revista AlterWords Nr.13 porque blogs como este merecem. “

E assim aconteceu...

Na página 26 do nº. 13 da Revista AlterWords o nosso blogue com “capa” do Poema Colectivo postado em 29 de Janeiro último, Bruno Pereira dá a conhecer o nosso blogue Poesia Portuguesa com aquelas palavras de apreço.

Congratulando-me em nome do Poesia Portuguesa e de todos os que têm permanecido fiéis a este projecto, endereço o meu agradecimento à
Revista AlterWords na pessoa do Bruno Pereira. Obrigada.

Um grande abraço a todos.

Otília Martel

quinta-feira, fevereiro 18, 2010

360 graus de poesia

Pintura de Salvador Dali

Não posso escrever poemas apenas com poesia. Poesia são sonos que vou dormir com o tempo que me resta até ser hoje. É poesia chegar ao fim do copo às vezes sem beber uma única palavra. Acrescentar mais uma hora à eternidade e entornar à tona da tua boca todos os desejos que sorvo quando não escrevo por ser de silêncio o tempo que te basta para ser feliz. São poesia corpos de água que peço ao céu para te embriagar com doses de esquecimento. São poesia sons que me ensurdecem pela garganta abaixo. Arcos de quem flecha uma janela no meio dum coração em pé de aços. Aguarelas de chuva que se fazem eco caindo em catadupa de duas gotas.

São poesia dardos em direcção ao oeste este incêndio à flor da pele este barco estes remos contra a maré estas asas este voo enevoado estes dedos de beliscar as estrelas depois das palavras. São poesia céus para voar transformados em obstáculo. Pontos cardeais que não chegam a nenhum poente. Caminhos de andar desnorteado entre o norte e o luar. Enxadas que descascam a paisagem. Sinais de fumo que nos atravessam em procissão poesia as fracturas de luz e traços de alegria e cores de azul. São de prosa as rosas do vento que nos revela até onde é infinito o sono que vamos levando aos poucos.

São de prosa.

A cama electrodoméstico de fazer metáforas quando a noite se enche de alma. A bússola que não me cura deste jeito imundo de apedrejar as palavras. O almoço que fica mais pequeno quando retiro metade para servir de jantar. O lavatório sujo de manhãs por esfregar. O pão duro matinal fora do alcance dos dentes. Os cigarros que perfumo como incenso. Doesse tudo isso como uma imperceptível bofetada de amor inscrita na face. Sou eu beijo ou inspiração boca a boca ao último verso. És tu a enlouquecer pouco a pouco horas acrescentadas no colo da eternidade. Somos nós corpo a corpo salpicados com um tiro de imaginação em papel de embrulhar sonhos.

Não posso escrever poemas apenas com poesia. Um dia não se cura de uma ferida para a outra e apenas saudade não basta para te esconder da minha ausência.

in ParadoXos

sexta-feira, janeiro 29, 2010

Poema Colectivo.

Pintura de Üzeyir Lokman Çayci


um beijo
no centro
do coração
e que a voz
se erga
pulando a cerca da noite
em balidos de veludo
despertando sobre a areia
no aroma da aurora

um beijo
um beijo ao lado do coração
para depois o agarrar
na noite perdida e achada
sem nunca a voz derrubar

da boca nasce então um grito
nas mãos
cravos vermelhos
no coração
amor novo
nascido na madrugada
que aqui não chegou

nesta minha terra não se podia cantar
até que um cravo de liberdade
nos fez levantar e gritar

as vozes ergueram-se em uníssono
e um canto fizeram despertar

eis agora
no centro do cravo coração
alma de novo a pulsar
não pode perder a noção
não pode deixar-se calar
desperta voz do amor
desprende deste cravo
as notas suaves
mas graves
de arpejos quase sem dor

escuta
o olhar preso na miséria do povo
ouve o soldado poeta
de mãos a gemer
ejaculando ecos de raiva
com que bordava as estrofes
pressentindo em júbilo

que um abril havia de acontecer
e no perfil dum tempo a correr
atiram as palavras-mal-paridas
como balas abatendo os cravos que nasciam
no coração do poeta

olha os passos fardados
olha o ganir do medo
vampiros vorazes
procurando sugar o puro sangue
da madrugada
sem o tempo da aurora

que fazer

que fazer
deste tempo
daquele tempo

pára
pára tempo
tempo não pares
olha o futuro

futuro

onde

para onde
para ontem

para amanhã
porque hoje
não és porto de abrigo

cada um escolheu seu jardim florido
nos verdes sonhos da juventude que escoa
onde nossos filhos abraçarão
gaia
que lhes deixaremos como
terra queimada e desilusão

sabes

não me perguntes
como vivi o futuro
porque eu quero
sepultar o tempo
o passado é amanhã
e por ti vou esperar
nos silêncios gastos
enrolados nas areias
ansiando um tempo novo

serenos
aguardamos
o que somos
o que fomos
fruto da seiva
escorrida da terra ferida
de onde nasceram
cravos vermelhos
que ousaram
perpetuar o nome de
liberdade

direi então
mais do que nunca

um beijo
no centro
do coração e que a voz
se erga
ao nascer
da aurora


Imagem de Isabel Monteverde in Artista Maldito


Ideia original do Blogue Poemar-te


Participaram neste poema, com pequenos retoques do José Marinho, autor da ideia e igualmente participante:

Isabel Monteverde,
Ana Paula Sena Belo,
Fátima,
BC-SLetras,
Vasco,
Desnuda,
Marta Vasil,

Betty Martins,
Menina Marota,

Poetaeusou,
Rosa Brava,
José Marinho.

(A versão em bruto (original) poderá ser vista no próprio Blogue)

quarta-feira, janeiro 13, 2010

Janeiro

Pintura de Carlo Carrà


Não chove nem faz sol na minha rua.
É a hora triste. Aquela hora morta
em que uma sombra nos espreita a porta
e pelas frinchas gastas se insinua.

Monótona e distante quer a lua
reflorir ao luar, na minha horta,
aquela cerejeira velha e torta
que há muitos anos amanhece nua.

Um cão sujo, faminto, vagabundo,
com ar de quem já sabe o que é o mundo,
para ali se ficou lambendo uns pratos…

Passa gente embrulhada em roupas velhas…
E sobre as casas, através das telhas,
A sinfonia bárbara dos gatos.


Fernanda de Castro in, Cidade em Flor
pág. 27/28 (1924)

sábado, dezembro 19, 2009

Natal...

Imagem cedida por Pessoa Amiga

Velho Menino-Deus que me vens ver
Quando o ano passou e as dores passaram:
Sim, pedi-te o brinquedo, e queria-o ter,
Mas quando as minhas dores o desejaram...

Agora, outras quimeras me tentaram
Em reinos onde tu não tens poder...
Outras mãos mentirosas me acenaram
A chamar, a mostrar e a prometer...

Vem, apesar de tudo, se queres vir.
Vem com neve nos ombros, a sorrir
A quem nunca doiraste a solidão...

Mas o brinquedo... quebra-o no caminho.
O que eu chorei por ele! Era de arminho
E batia-lhe dentro um coração...

NATAL, de Miguel Torga



terça-feira, dezembro 15, 2009

Criança eterna…

Imagem autor desconhecido (Google)

Vi nos voos dos pássaros
O entardecer escapar-se por entre
Os traços verdes do arvoredo.
Sob os olhos do anoitecer uma alma
Amparada no florir de um beijo
Em instantes de sol e doçura;
Um coração a sangrar por nada ter
Para dar e tudo perder e um homem
Que toda a sua riqueza consigo transporta.

E vi sombras de fogo num peito,
Uma alegria descontente em horas
Que são minutos quando dois corpos
Em seu leito se enamoram; e vi bolsos
De mar e de luz no desassossego
E em tudo vi a criança eterna…
Vi-me a mim.

De Alves Bento Belisário in, Inquietudes, pág. 38 (2005)



sexta-feira, novembro 20, 2009

Poesia Portuguesa...

Completaram-se no passado mês de Setembro 4 anos sobre a criação deste Poesia Portuguesa que visou, essencialmente, a poesia dos mais variados autores de blogues.

Confesso, que foi um projecto que acarinhei com muita alegria desde o seu início, que me deu uma perspectiva maravilhosa da partilha que se faz neste mundo virtual.

O início deste projecto, tinha um objectivo que, infelizmente, não se concretizou por variadíssimas razões, incluindo a que muitos autores começaram a editar pessoalmente os seus trabalhos, o que me deixa muito feliz, porque nalguns dos casos, esta página serviu de incentivo para isso.

Mas existe um tempo para tudo e, o tempo da minha busca, por esse mundo internauta, cessou.

Mas, como não se esgota a Poesia Portuguesa na imensidade dos seus variadíssimos temas, de autores famosos, só conhecidos ou, simplesmente, desconhecidos, esta página continua, mas numa outra perspectiva, sem obrigatoriedades.

Há um Mundo Poético por descobrir: autores publicados, ou por edição própria ou através de editoras, mas que, por circunstâncias diversas, não são conhecidos do grande público; autores, igualmente, de grandes capacidades literárias, mas que nunca tiveram sobre si os flashes do sucesso.

São esses autores que pretendo trazer ao Poesia Portuguesa e, essa finalidade leva-me a pedir a vossa participação: se tem um livro de poemas de algum autor desconhecido de que gosta muito, remeta ao endereço Portuguesapoesia@sapo.pt com indicação do nome do autor, título do poema e do livro, bem como o número da página; poderá ainda, se o entender, enviar a capa do livro, que será ou não publicada, consoante a oportunidade de postagem.

É este o novo desafio que vos faço, não obstante esta página poder, do mesmo modo, partilhar poesia de autores consagrados, apesar de já disponíveis em muitos sites de poesia na blogosfera, dependendo das opções de escolhas.

A Poesia vive e viverá sempre no coração de quem a ama.

Imagem de autor desconhecido


E a estrela perdeu-se na noite deserta...
Tentar procurá-la, para quê, se era em vão?
Deixaram-me em casa com a porta aberta.
Mas eu bem compreendo que estou em prisão.

Talvez que pensassem mal imaginário
a mágoa duns olhos em rosto bravio.
Mas eu bem me sinto peixe em aquário,
e sei a amargura de sonhá-lo rio.

Mas eu bem compreendo o cruel desalento
dos gestos frustrados, perdidos no ar.
Foi curta a mensagem, findou meu tormento.
E não vale a pena o que está por contar.

(Poema “Bandeira Branca” de Maria Manuela Couto Viana
in, antologia das mulheres poetas portuguesas, pág.s 179/180)

quinta-feira, novembro 05, 2009

Podia dizer-te...

Pintura de Jean-Baptiste Valadie


Podia dizer-te como te vejo,
mas aquilo que os meus olhos vêem é pouco para dizer-te.
Vejo-te, é certo,
vejo-te como outros captaram nos olhos aquilo que decerto os meus também vêem nas vistas.
Ver é uma coisa para quem tem vistas
e não apenas para quem tem olhos.
E eu tenho vistas.
Às vezes são ouvidos, as vistas,
outras são mãos, ou esse odor que o meu corpo respira quando passas.
Ver-te, ver-te, ver-te...
só de te ver em verde meu coração se transformaria
ou se tu fosses uma rosa, uma rosa vermelha como o sangue
que se agarra aos espinhos.
Mas a vida é outra coisa, a vida é para quem tem olhos
e eu só tenho estas vistas.

Estas vistas cansadas dos escolhos dos abismos dos outros.
Vistas cansadas de te seguir na corrente onde mergulhaste.
Vistas exaustas por ter ficado ali, parado, a ver
e não a olhar.
Para onde,
para que mar?

Estou deitado na relva do jardim.
Ainda florescem rosas
e eu descanso a vista.


Poema de
José Miguel de Oliveira

segunda-feira, outubro 05, 2009

Setembro já se foi, mas...



Setembro é um sentimento,
É uma metade de Lua
Desajeitada no céu.
Grito contínuo de esquecimento,
Nudez ao léu.

De novo estranhos.
Praia deserta, sem mais respostas
Nem límpidas mentiras
Em calorosos banhos.
O vento traz pétalas em forma de safiras.

Restos de festas evasivas
Convidam à recapitulação,
Ousada e pouco racional,
De escolhas emotivas dissuasivas.
O amor é uma rua abismal.

Fresca aragem sem aroma,
Adeus adiado e promíscuo
Cuja sede de eternidade
Constitui o maior sintoma.
Que ausência de fecundidade...

Que expressão pálida:
A estrada do Guincho
Coberta de cirros,
De vegetação árida.
O horizonte carece de navios.

Os olhos carecem de lágrimas,
Porque Setembro é um sentimento:
É uma metade de Lua
Desajeitada no céu.
Grito contínuo de esquecimento
– Nudez ao léu.

(Poema "Setembro" de
D. B. Radou)



Imagem de Philip Dunn

domingo, setembro 27, 2009

Asas do meu pensamento

Pintura de John Singer Sargent


Nas asas do meu pensamento,
Levito,
Procuro no ser espelhado de cada um,
O que me transforma e me alimenta,
Voo na direcção do que me complementa,
Conheço o desconhecido que me atrai,
Suspiro por um qualquer momento que divago,
Aspiro sentimento em tudo o que encontro.

Ave rara essa que voa sem rumo,
Rumo talvez encontrado,
Num qualquer momento que me apazigua,

Ave que pinta,
Que paira nas nuvens que encontra,
Que se delicia no vazio que preenche.

Indomável ser,
Que sou,
Que encontro no sonho,
A razão da existência,
E que na porta entreaberta,
Procuro um qualquer ser humano,
Rico no pensar,
Rico no sentir.
Rico em tudo o que abriga.


Poema de
Renata Pereira Correia

sábado, setembro 19, 2009

Que aprendi eu

Pintura:Yeda Arouche

Que aprendi eu
-
Aprendi tudo o que do nada se faz grande
-
Deixei cair ferramentas
aos saberes a mim os moldei
na helicoidade temporal em que se fundem
-
Declinei títulos e graus honoríficos
a burocracia que impera
e não deixa ver
-
Canto e não canto
toco e nada toco
sei e nada sei
choro o que deixei
-
Pouco ou nada sou
na papelada que esqueci
nem cito
o que não vi
-
Que serei eu no que aprendi
-
Sou
-
Sou o que se vê
e cresce
neste lugar
-
Sou
o que do nada eu escrevi
e escrevo
e canto
e toco envolto em manto
-
Sou ou não sou
dizei-me em vosso espanto
-
Se não sou
o que é que é isto

Poema de Jaime Latino Ferreira