"João, paras quieto ou tenho que te dar uma palmada?"
Ficou quieto de repente, saltou para o meu colo, no sofá, e perguntou-me com um ligeiro sorriso, vestido de espanto:
"Foi o teu pássaro da alma que abriu a gaveta de estar zangado?"
Foi a minha vez de experimentar o espanto. Apanhada completamente de surpresa, não conseguia perceber se estava a tentar distrair-me a atenção do que me tinha feito zangar ou se estava simplesmente a "mangar" comigo...
"Tu não penses que me fazes esquecer a palmada. Ora volta lá a fazer a mesma asneira e vais ver se há pássaro que te salve... Ai, ai, ai""Mas tu não me respondeste. Foi o teu pássaro da alma?"
"Mas que conversa é essa?"
"Então tu não sabes que vive um pássaro dentro de nós? Oh, mãe, eu conto-te!Ele chama-se Pássaro da Alma e vive num sítio muito fundo, dentro do peito das pessoas... foi a Mafalda que nos contou hoje..."
"E esse sítio é...?""É a nossa alma, mãe! E lá, no fundo dela, há muitas gavetas... a gaveta de estar zangado, a gaveta de ficar contente, a de ter sono, a de ter fome, a de ficar triste, a de chorar... e até há gavetas de ter vontade de dar coisas às pessoas!"
" Que coisas, filho?"
"Beijinhos... queres um? Se eu te der um beijinho pode ser que o teu Pássaro da Alma feche a gaveta de estar zangado..."
Olhei bem no fundo daqueles olhitos expectantes e não consegui disfarçar a ternura de um sorriso. Nesse momento, senti no fundo do meu peito o movimento de uma velha gaveta a fechar... e o crescer de umas asas que me impeliram a voar ao mundo do meu menino-homem que, ainda no meu colo, esperava ansiosamente uma resposta minha, como se essa fosse a confirmação da veracidade daquela história lindíssima, contada pela Mafalda! Abracei-o devagarinho, muito devagarinho para que tivesse tempo de perceber a imensidão do meu Sim... e sosseguei-o:
"O Pássaro da Alma já fechou a gaveta de estar zangado, mas disse-me que voltava a abri-la se tu fizesses asneira outra vez... Por isso vamos lá a pensar os dois no que havemos de fazer para o Pássaro só abrir as gavetas das coisas boas... O que achas?""Mas eu sei! Olha, não podemos trancar as gavetas sem ele ver porque essas gavetas não têm chaves, mas podemos ter vontade de fazer as coisas bem e o Pássaro da Alma passa as coisas boas para as gavetas de cima e esquece-se das gavetas de baixo, onde ficaram as coisas más... Ele gosta de beijinhos e tu também. Eu dou-te muitos beijinhos, não faço asneiras e pronto!
"Combinado! Vamos lá ajudar o Pássaro da Alma a arrumar as coisas boas nas gavetas de cima! Dá cá um beijo grandeeeeeeeeeeee!"
Agora já entendo os ruídos da Alma nos dias cinzentos...
É o Pássaro da Alma a arrumar as gavetas! Logo que se esquece das debaixo, a alma serena e a paz invade-me! Eu pedi-lhe que reservasse a gaveta mais acima de todas para colocar lá estes momentos doces da minha vida... e que a deixasse sempre aberta!...
Composição de Cris (Do Fundo do Meu Arco-íris)