Lisboa - Óleo sobre tela de Francisco Smith(1920)
Mas que criança alegre ali vinha,
Arrastada pela mão da sua presumível mãe,
Com o cabelo amarelo em desalinho,
A tagarelar e a bisbilhotar
Os artigos expostos nas prateleiras.
Eu observava a cena,
Enquanto esperava ser chamado
Para levantar uma encomenda
Que o carteiro não me trouxe a casa -
Preferiu deixar o aviso
Na minha caixa de correio.
A mãe, muito magra, deambulava
Com uma caixa de sapatos verde,
Sem tampa, estendia-a às pessoas
Para que nela depositassem,
Por caridade, uma esmola.
Muito jovem, diria mesmo, jovem demais.
Para já ter uma filha de dois ou três anos?
Até podia ser a irmã mais velha de uma família cigana
Que faz da mendicidade profissão.
Não havia sinal de sofrimento na cara da pedinte,
Saiu cedo para trabalhar (acho)
E à tarde, quando regressar,
Alguém irá pedir-lhe contas
“E se não for?”, pensei.
Talvez seja mesmo mãe da criança
E esteja sozinha neste mundo,
Que insensível sou ao sofrimento alheio.
Que merda!
Aproximou-se de mim por trás
E estendeu-me a caixa.
Olhei de lado para dentro dela.
Vazia, completamente vazia, a caixa!
Depois de ter passado por dez ou mais pessoas!
Mundo vadio, que mundo bestial!
Porque é que um ser humano,
Que tem uma criança tão alegre e saudável,
Não há-de dispor de meios
Para assegurar a sua existência
E a do filho sem precisar pedir?
Nem percebo porque é que esta situação
Tão corriqueira entre nós,
Me causa tamanha dor!
– Eu próprio já recusei tantas esmolas,
Não, uma esmola destas acho que não.
Que posso fazer?
Sei que a minha esmola não é solução.
Se lhe der a esmola,
Apenas fico de consciência aliviada,
Ela, ficará na mesma
Hesitei. Numa fracção de segundo, ainda pensei:
“A vida tem uma duração finita, são dias, são anos,
São décadas e pouco mais; se eu lhe der uma esmola,
Talvez ela e a criança cheguem ao fim do dia sem fome;
(Ao fim e ao cabo nós todos
Só queremos chegar ao fim dos dias sem fome.)
Estreei a caixa vazia das moedas com uma moeda,
E ela lá continuou a sua ronda sem espanto.
Desta vez, já outros seguiram o meu exemplo,
E puseram mais moedas na caixa sem vazio.
Saíram as duas (mãe e filha?),
E fiquei a espreitá-las
Através da fachada envidraçada dos correios.
Atravessaram a rua para o outro lado,
E vi-as entrar no café de defronte,
Todas contentes. Afinal tinham mesmo fome.
E veio-me à mente o sempiterno verso
Que enforma a minha própria mente:
"Mas as crianças, Deus meu…"
Só então percebi plenamente
Porque tive tanta pena daquela gente.
(Poema de Henrique Sousa que apesar de gostar muito mais de escrever em prosa, tendo até alguns livros publicados, teve a gentileza de me enviar este poema, diria antes, este flash do dia a dia de quem percorre caminhos e a quem peço desculpa pela ousadia de o postar… )